segunda-feira, agosto 31, 2020

Sobre a guerra no São Carlos



"O Complexo do São Carlos no Estácio, colado na Cidade Nova, integra um território que foi um dos epicentros do processo de construção da identidade cultural brasileira ao longo dos séculos XIX e XX. Naquele lugar nasceram, entre outros formatos modernos da nossa cultura popular, o samba e a primeira escola de samba (Deixa Falar). No morro nasceu a Unidos de São Carlos que se converteu na hoje querida Estácio de Sá. Nos seus pés nasceu Roberto Marinho - criador das Organizações Globo. Por ali circulou e viveu Gonzagão e, não por acaso, nasceu Gonzaguinha. Não pára por aí... moraram no morro Grande Otelo, Aldir Blanc, Herivelto Martins. E a "Turma do Estácio" que revelou Luiz Melodia e atraiu para o convívio no bairro e no morro, criadores como Waly Salomão e Helio Oiticica! Existem muitos outros grandes nomes da cultura brasileira que tiveram no Estácio e na Cidade Nova, fontes de suas inspirações criativas e insumos essenciais de suas genialidades. 


Além de guardar a memória da cultura popular do Brasil, o território onde está o Complexo do São Carlos foi sede dos primeiros e maiores experimentos urbanos do Rio. Mas, do Canal do Mangue ao Sambódromo, todos eles foram matando aos poucos os fluxos e as interações sociais que produziram as trocas que forjaram a nossa identidade. Mais recentemente, o bairro foi se convertendo em um território institucional e em um cluster econômico que concentra poder e a sede de grandes marcas e empresas. 

Lamentavelmente, há quase dois séculos, "desenvolvimento" no território (até agora) não produziu prosperidade. Ao contrário, o que se verifica na história e no presente, são intervenções violentas que ampliaram o adensamento e favelizaram ainda mais o Complexo do São Carlos, bem como precarizaram as condições de moradia do Estácio e da Cidade Nova. 


Hoje a grande mídia noticia o "terror" com narrativas de "guerra" sobre os acontecimentos que envolvem a disputa do Complexo do São Carlos por facções rivais. Não sou contra expor o factual, objeto de comentários de "especialistas" que pouco dizem sobre as violências institucionais que, como a história demonstra, no lugar de gerar prosperidade, aprofundou desigualdade e exclusão. 

Para evitar o que estamos assistindo desde a madrugada é preciso avaliar tudo o que foi e o que existe no entorno do São Carlos em termos de ativos econômicos, institucionais e históricos e se perguntar - como o entorno desta riqueza e grandes estruturas se converte em um teatro de guerra e desigualdades? O que os gigantes das instituições do Estado (em diferentes níveis de governo e poder) têm a ver com isso? O que os gigantes da tecnologia, da fibra óptica, da telefonia, da engenharia, da logística, da energia, da segurança, da mobilidade ... têm a ver com isso? 


No Circo Crescer e Viver temos tentando liderar a construção de uma rede de moradores e vizinhos, organizações públicas e privadas, para fazer da Cidade Nova, Estácio e adjacências, uma comunidade próspera, acolhedora e vibrante. Só isso é capaz combater os dramas sociais e urbanos do território, que são a fonte seminal do que vimos acontecer nesta madrugada.  Se o conjunto de estruturas existentes na região, não assumir a tarefa cívica de converter riqueza em desenvolvimento comunitário, estas guerras irão se repetir e, como temos visto, cada vez mais extremadas.  Se o capital social do território não se integrar, se os grande players econômicos não reinvestirem parte da riqueza que produzem para melhorar as condições de vida no lugar onde desenvolvem seus negócios, e se os poderes públicos não se envergonharem de oferecer à Cidade, ao Estado e ao País soluções que não experimentam na sua vizinhança, significa que já entramos  em colapso como sociedade.



Não adianta expandir e expulsar, as pessoas seguirão subindo o morro, adensando a favela e complexificando o problema. Chegou a hora do desenvolvimento e da revitalização da Cidade Nova e do Estácio reverter oportunidades e bem estar para as pessoas que ali vivem. Do contrário o calibre das balas só vai aumentar para tentar furar o muro da indiferença.

Eu ainda acredito que é possível transformar positivamente o território, é só a gente unir forças!"

Junior Perim, ex-Secretário Municipal de Cultura e diretor-presidente do Circo Crescer e Viver

Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego

Origem das imagens: Google

5 comentários:

Adinalzir disse...

Só para lembrar:

"Morro de São Carlos é uma favela localizada no bairro do Estácio, na Zona Norte do Rio de Janeiro. É considerada uma das favelas mais antigas da cidade, sendo que sua ocupação remonta ao início do século XX, assim como também é considerada um dos berços do samba, devido à extinta escola de samba Deixa Falar, fundada por moradores.Há muitos anos atrás, um fazendeiro teria comprado terras próximas ao mangue (atual Praça Onze), onde teria tido suas criações de gado, e toda a sua família, após a sua morte, teria continuado a morar no local.

Com o passar dos anos, pessoas que não tinham onde morar, foram ocupar os pequenos lotes do Morro de Santos Rodrigues. Com a evolução da cidade do Rio de Janeiro, começaram a mapear o Morro de São Carlos. O apelido de Morro de São Carlos, vem da sua principal rua, a Rua São Carlos, que corta o morro ao meio em quase toda a sua extensão.

Texto compartilhado de Fotos Antigas do Rio de Janeiro em 31/08/2020.

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Excelente texto que aborda de maneira crítica e atual a situação do morro e do Rio em geral, confrontando uma sociedade que se recusa ainda a emcarar um problema que até agora só foi mascarado pelas autoridades, como no caso das políticas de "pacificação" de governos anteriores recentes, tratado com indiferença ou com repressão ideológica.

Unknown disse...

O que não recebe investimento tornasse abandono .

Adinalzir disse...

Unknown
Qual é o seu nome? Você não colocou!

Jonathan Pôrto disse...

Com o Golpe Militar Escravocrata Republicano de 1889 se deu inicio ao processo favelização da população !! Monarquia neles !!