segunda-feira, agosto 12, 2019

Resgate das origens de Niterói


Ismênia de Lima Martins

Bicentenário da Vila Real da Praia Grande, completado em 2019, inspirou um importante projeto sobre o desenvolvimento da cidade. Leia na entrevista abaixo:

"O dia 10 de maio de 2019 marcará o bicentenário da criação da Vila Real da Praia Grande, onde atualmente fica localizado o bairro de São Domingos, que deu origem a Niterói. A proximidade com a data motivou a professora emérita da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ismênia de Lima Martins e sua equipe de pesquisadoras – composta por 10 mulheres, sendo 9 doutoras em História e uma mestra em Educação – a criar um projeto para dar conta da história de Niterói a partir de “suas gentes”, se referindo às colônias originárias, que foram responsáveis pela criação e desenvolvimento da cidade.

A elevação do “sítio de povoação de São Domingos” à “Vila Real da Praia Grande”, em 1819, se deu a partir de um decreto assinado por D. João VI – que veio de Portugal para o Brasil em 1808 fugindo de Napoleão. A ordenação determinava que as quatro freguesias vizinhas – São João de Icaraí, São Sebastião de Itaipu, São Lourenço dos Índios e São Gonçalo – constituíssem o termo da nova Vila.

No decorrer desses 200 anos, ficaram marcadas no espaço urbano e na memória social as transformações políticas e administrativas experimentadas por Niterói. Em entrevista exclusiva, Ismênia explica o projeto, seus objetivos e desdobramentos, como um livro que será lançado no ano que vem e uma parceria com as escolas públicas municipais.

Por que comemorar a criação da Vila Real da Praia Grande?

Já há algum tempo vínhamos nos preocupando com isso. Tenho defendido que as efemérides são ocasiões para reflexão sobre temas correlatos ao evento. O mais importante é que nestas oportunidades se promovam ações que ultrapassem a festa. No caso específico de Niterói, persiste a demanda por uma produção historiográfica que responda às questões da sociedade contemporânea. Essa é uma das nossas pretensões: estimular a renovação da historiografia sobre Niterói, que ainda é muito marcada pelo viés memorialista. Destaque-se que o memorialismo é importante e grande fonte para os historiadores acadêmicos, mas o que nós propomos é outra coisa: interrogar o passado com questões do presente, buscar explicações a partir do método científico – do estudo e cruzamento de fontes diversas – para problemas políticos, sociais, demográficos, etc., que se conjugaram para as diversas conformações urbanas de Niterói.

Em que conjuntura se deu a criação da Vila Real da Praia Grande?

A Praia Grande, segundo o comerciante inglês John Luccock, era um local bucólico, com umas poucas casinhas, esparsas na floresta, à época da chegada de D. João ao Rio de Janeiro. Uma década depois, o mesmo autor registrou em suas memórias o fato de que, de todos os logradouros do entorno da Guanabara, nenhum vivenciou uma prosperidade tão grande como a Praia Grande. Dali partiam para a Corte, num movimento incessante, faluas (embarcações destinadas a transporte de carga e de passageiros) carregadas de víveres. Isso evidencia o crescimento econômico da região e desmistifica a tese romântica de que a elevação da Vila teria se dado como uma magnanimidade de D. João em reconhecimento à forma generosa como a população local o acolheu por ocasião do seu período de luto pela morte de sua mãe, a rainha D. Maria.


O grupo de pesquisa é composto por 9 doutoras em História e uma mestra em Educação, além de Ismênia.
 
De onde surgiu a ideia de criar um projeto que contemple a Niterói de todas as gentes, fazendo uma referência ao nome do projeto?

No que se refere a “Niterói de todas as gentes”, há quase duas décadas venho priorizando como tema particular de pesquisa o fenômeno imigratório, e nesse sentido orientei diretamente dez teses, entre mestrado, doutorado e pós-doutorado, sobre esse tema, e os ex-alunos se tornaram meus parceiros de pesquisa. Quando fui coordenadora de editoração da Faperj, entre 2004 e 2007, assinei um protocolo com o Cepese (Centro de Estudos de População, Economia e Sociedade), ligado à Universidade do Porto, em Portugal, cujo objetivo era o intercâmbio entre especialistas dos dois países, sobre o tema da imigração daquele país para o Brasil, campo que se alargou posteriormente.
Tal atividade estimulou-me a empreender junto ao Arquivo Nacional a organização de uma base de dados sobre a entrada de imigrantes. Com o apoio do BNDES, promovemos o tratamento, a digitalização e disponibilizamos uma base de dados para a web no site do Arquivo, com informações de 1,3 milhão de passageiros que desembarcaram no porto do Rio de Janeiro, entre 1875 e 1900. A inovação do projeto reside no seu alcance social, fato que lhe garantiu o financiamento do BNDES, uma vez que facilita a pesquisa probatória que garante os direitos civis relacionados aos indivíduos, às famílias e às propriedades. Assim, com essa trajetória, unir a minha preocupação com o bicentenário e o tema das migrações foi quase natural.

Quais os objetivos do projeto e qual sua importância para a Niterói contemporânea?

Considerando o marco dos 200 anos, organizei um projeto com uma equipe de historiadoras de diferentes instituições do Grande Rio, com experiência em história local/regional e na área de ensino, a fim de refletir as questões da cidade a partir do prisma das migrações. A pesquisa pretende debater a evolução urbana da antiga capital, as formas de acolhimento e interação dos imigrantes na cidade e as marcas dessas disputas no patrimônio urbano local. Pretende, também, ultrapassar os limites do academicismo com a publicação de livros que dialoguem com a produção memorialística local a fim de atender às demandas da comunidade por história.
Em nossos debates internos, convergimos sobre a necessidade de ultrapassar a universidade para firmar um compromisso com a educação pública para a cidadania. Por isso, buscamos uma parceria com a Secretaria e a Fundação Municipal de Educação para atingir o conjunto dos professores da Rede Municipal de Ensino, por acreditar que eles nos reciclam em relação às demandas da sociedade. Queremos apoiar seus projetos que versem sobre a temática proposta e sobre a realidade vivida pelos alunos.

Além da Secretaria de Educação, que outras parcerias o projeto pretende estabelecer?

No plano oficial, já contamos com o apoio da Secretaria e buscaremos, também, o da Fundação de Arte de Niterói (FAN) e da Secretaria Municipal das Culturas. Da mesma forma, procuraremos o auxílio da Faperj para financiarmos a pesquisa. Além disso, o reitor eleito da UFF, professor Antônio Claudio, assim como o pró-reitor de Extensão, professor Cresus Vinícius, já manifestaram seu entusiasmo pelo projeto. No campo privado, pretendemos mobilizar os mais diversos segmentos da sociedade, como clubes, associações e entidades culturais.

O projeto “De Vila Real da Praia Grande à Niterói de todas as gentes: 200 anos de História” vai se tornar também um livro. Já há previsão de lançamento?

Na verdade planejamos vários “produtos”, como um livro sobre as migrações em Niterói nos séculos 19, 20 e 21. No próximo mês de maio, quando se comemora o bicentenário, pretendemos realizar um seminário. Já o primeiro livro, tem lançamento previsto para 22 de novembro do próximo ano. Pretendemos também, em conjunto com os professores da Rede Municipal de Ensino que queiram contemplar o tema, colaborar para a produção de instrumentos de trabalho como livros didáticos e paradidáticos, vídeos e mapas históricos. Mas isso será uma parceria que acompanhará o ritmo do trabalho dos professores da rede.
Finalmente, realizaremos um curso de extensão direcionado aos docentes e demais interessados, com destaque especial para os temas sugeridos por eles. Tal cooperação já se encontra em curso a partir do seminário realizado em 10 de outubro no auditório da Fundação, e as sugestões estão sendo coletadas pela equipe.

Fale sobre as colônias e descendentes que formaram e construíram Niterói. Como elas são divididas?

Os estudos migratórios no Rio de Janeiro vêm se desenvolvendo nas últimas duas décadas. Uma das explicações é o fato da hegemonia absoluta, do ponto de vista demográfico, do grupo português na composição da população fluminense. A forma não traumática como se deu a independência do país propiciou a continuidade de fluxos ininterruptos de portugueses para o Brasil, principalmente para o Rio de Janeiro, Corte e depois Capital Federal. O primeiro Censo do Império, de 1872, e o de 1920, por exemplo, revelam que a população por freguesia era constituída em mais de 50% por lusitanos. Pode-se dizer que houve uma naturalização da presença do imigrante português que tinha a mesma origem, cor, língua e religião dos primeiros povoadores, colonizadores. Em São Paulo ou Rio Grande do Sul, lugares em que a composição demográfica era muito diversa, os estudos imigratórios se desenvolveram de forma mais intensa, não apenas nas universidades, mas em outras associações da sociedade civil.

No projeto, há referência à importância da migração interna em Niterói. O que justifica tal afirmação?

Niterói era a capital da província que vivenciou a crise da cafeicultura escravista. No entanto, com o advento da República, encontrou possibilidades de recuperação na expansão pela região serrana do Grande Cantagalo e do Noroeste Fluminense, onde Itaperuna se destacaria como o maior município exportador de café do mundo na década de 1920. Tal conjuntura, além do prestígio de importantes políticos fluminenses como Nilo Peçanha e Feliciano Sodré, propiciaram a modernização da cidade e, sobretudo, a criação de um conjunto de estabelecimentos de ensino superior, que viriam a se constituir como uma verdadeira malha universitária informal, em polo de atração para os filhos da elite agrária do interior, mas também, dos imigrantes bem-sucedidos. A maioria, quase absoluta, dos universitários de fora acabava por se fixar definitivamente em Niterói, capital do Estado que oferecia oportunidades de emprego na máquina pública, e no campo das profissões liberais ou educacional e ainda no comércio.

Sendo acaso ou não, o grupo de pesquisadoras é composto por 11 mulheres. Vocês estão incluídas no espaço acadêmico, antes dominado majoritariamente por homens, como se sentem fazendo parte dessa longa revolução feminina?

Curiosamente somos onze mulheres, mas, no decurso do desenvolvimento do projeto, outros colegas da UFF, homens, serão incorporados ao trabalho, como Paulo Terra e Paulo Knauss, professores do Departamento de História, o Rodrigo Almeida, professor da Faculdade de Educação e Vitor Fonseca, professor do Departamento de Ciência da Informação. Mas não posso deixar de considerar as estatísticas que apontam que na atualidade as mulheres detêm maior escolaridade que os homens, então essa equipe dialoga com esses dados.

Hoje, sou considerada uma feminista histórica. Abracei desde cedo a militância política em diversas frentes, mas em particular pela igualdade de gênero e continuo forte na luta. Sempre defendi, ainda que algumas companheiras feministas não gostassem, que o machismo não é apenas um problema dos homens e sim um fenômeno social, que tem muitas vezes nas mulheres um veículo de reprodução, uma vez que elas detêm poder fundamental na educação dos filhos e na economia doméstica. Naturalmente, este tema penetrará o estudo de “Niterói de todas as gentes”.

Pesquisadoras que atuam ao lado de Ismênia de Lima Martins no projeto: Andréa Telo da Corte, Claudia Clamon, Maria Cristina Caminha, Mariléia Inoue, Miriam Abduche Kaiuca, Norma Éboli, Érica Sarmiento, Juniele de Almeida, Isabella Gaze e Rosane Bartolhazzi".

Texto  e entrevista de Ana Paula Soares em 25/11/2018.
Fotos de Marcelo Feitosa.

Originalmente postado em O Fluminense

Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego

2 comentários:

Belavita disse...

Um belíssimo trabalho de resgate histórico!

Adinalzir disse...

Meu caro Belavita
Também adorei esse trabalho!