As uniões e os matrimônios mistos foram comuns e estiveram presentes nas relações interétnicas desde os primeiros encontros e contatos entre índios e não índios no Brasil. Mas índios e portugueses valoravam e instrumentalizavam de modo diverso os casamentos mistos. Os tupinambás, por exemplo, incorporaram os primeiros europeus à sociedade nativa segundo seus próprios interesses, respeitando a geopolítica de suas alianças de guerra e de matrimônio.
O Cunhadismo era uma instituição indígena que consistia na prática de se dar uma moça índia como esposa. Com isso, se estabelecia mil laços que ligavam o estrangeiro com todos os membros do grupo. Em sua função civilizatória, o cunhadismo fez surgir a numerosa camada de indivíduos mestiços que ocupou efetivamente o Brasil. Nesse sentido, funcionou como um criatório de gente miscigenada nas regiões onde “náufragos” e “degradados”, vindos da Europa, se assentaram.
Sem a prática do cunhadismo, era impraticável a criação do Brasil. Os povoadores europeus que aqui vieram ter eram uns poucos náufragos e degredados, deixados pelas naus da descoberta, ou marinheiros fugidos para aventurar vida nova entre os índios. Por si sós, teriam sido uma erupção passageira na costa atlântica, toda povoada por grupos indígenas.
Foi nesse período que surgiram as primeiras biografias conhecidas de mulheres indígenas do Brasil, filhas dos caciques aliados, chamadas pelos portugueses de "Princesas", como Maria do Espírito Santo Arco Verde, de Pernambuco, Catarina Paraguassu, da Bahia, e Bartira, filha do cacique Tibiriçá, de São Paulo
O primeiro e principal desses núcleos é o paulista, assentado muito precocemente na costa, talvez até antes da chegada de Cabral. Centrava ao redor de João Ramalho, que mais tarde, após ter filhos e uniões com várias mulheres nativas, se casou na Igreja com Bartira pelo Padre Manuel da Nóbrega.
Da união de mais de 40 anos, tiveram nove filhos juntos, e dessa união descendem inúmeras das mais tradicionais famílias paulistas atuais.
Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala, considerou o elemento indígena como importante formador da identidade social brasileira, principalmente nos primeiros séculos de contato com os europeus, atribuindo um papel essencial às "cunhãs", as mulheres nativas:
"Para a formidável tarefa de colonizar uma extensão como o Brasil, teve Portugal de valer-se no século XVI do resto de homens que lhe deixara a aventura da Índia. E não seria com esse sobejo de gente, quase toda miúda, em grande parte plebeia, além do mais, moçárabe, isto é, com a consciência de raça ainda mais fraca que nos portugueses fidalgos ou nos do norte, que se estabeleceria na América um domínio português exclusivamente branco ou rigorosamente europeu. A transigência com o elemento nativo se impunha à política colonial portuguesa: as circunstâncias facilitaram-na. A luxúria dos indivíduos, soltos sem família, no meio da indiada nua, vinha servir a poderosas razões do Estado no sentido de rápido povoamento mestiço da nova terra. E o certo é que sobre a mulher gentia fundou-se e desenvolveu-se através dos séculos XVI e XVII o grosso da sociedade colonial, em um largo e profundo mestiçamento, que a interferência dos padres da Companhia de Jesus salvou de resolver-se todo em libertinagem para em grande parte regularizar-se em casamento cristão"
Eram chamadas de temirecô igualmente as mulheres que se uniam (amancebavam) aos portugueses.
Para Varnhagen, os índios não desapareceram em virtude de “verdadeiro e cruel extermínio”, mas por “cruzamentos sucessivos”.
O processo brasileiro se apresentava, aos olhos do visconde do Porto Seguro, como análogo ao português: uma raça civilizada (os romanos) conquistou uma nação valente, porém bárbara (os lusitanos) e de sua miscigenação nasceu o povo português, do qual o brasileiro é uma continuidade lógica e necessária
Fonte: Adams, C., Murrieta, R., & Neves, WA (2006). Sociedades caboclas amazônicas: modernidade e invisibilidade. /Revisiting the Genetic Ancestry of Brazilians Using Autosomal AIM-Indels.
Um terceiro núcleo de importância relevante foi o de Pernambuco, em que vários portugueses, associados com os índios Tabajara, produziram quantidade de mamelucos. Inclusive o célebre Jerônimo de Albuquerque, grande capitão de guerra na luta da conquista do Maranhão ocupado pelos franceses.
Em um conflito com os índios Tabajara, Jerónimo foi feito prisioneiro por eles, nas proximidades de Olinda, Recolhido a "ocara" guardado pelas virgens da tribo, enquanto, com os companheiros, esperava o momento do sacrifício, segundo a tradição local despertou a paixão de Muira Ubi, filha do cacique Arco Verde, que por êle intercedeu conseguindo sua liberdade e a dos demais prisioneiros . Jerônimo de Albuquerque se uniu a Muira Ubi que recebeu, no batísmo, o nome de Maria do Espírito Santo Arco Verde, trazendo para a Capitania a valiosa adesão de Arco Verde e de tôda a nação tabajara .
Êsse acontecimento não teve entre nós o relêvo que merece, mas é idêntico ao acontecido na América do Norte com o inglês John Smith e a índia Pacahontas, fato alí sempre lembrado, inclusive em monumentos públicos qual a estátua, no Capitólio, do colonizador britânico. “Da união com a pricesinha tabajara, como a menciona Gilberto Freire, teve Jerônimo vários filhos, entre êles Jerônimo, primeiro Capitão-Mor do Rio Grande do Norte, construtor do Forte dos Reis Magos, fundador de Natal, vencedor de La Ravardière e conquistador do Maranhão, de onde expulsou os franceses ali instalados havia vinte anos . Jerônimo nasceu em Olinda em 1548 e faleceu em São Luís como Capitão-Mór do Maranhão em 1618. Por ter expulsado os franceses do território brasileiro, recebeu o sobrenome "Maranhão" do Rei Filipe III de Espanha.
Da união de Maria com Jerônimo de Albuquerque nasceram oito filhos, entre eles Jerônimo de Albuquerque Maranhão, que expulsou os franceses do Maranhão e Catarina de Albuquerque, que se casou com o fidalgo florentino Filippo Cavalcanti. Da Linhagem de Filippo e Catarina descende o primeiro cardel na América Latina, Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti, mais conhecido como Cardeal Arcoverde.
Outro núcleo pioneiro, de importância essencial, foi o de Diogo Álvares, Caramuru, pai heráldico dos baianos. Ele se fixou, em 1510, na Bahia, também cercado de numerosa família indígena. Conseguiu manter certo equilíbrio entre a indiada com que convivia cunhadalmente e os lusitanos que foram chegando. Converteu-se, assim, na base essencial da instalação lusitana na Bahia. Ajudou até mesmo os jesuítas e legou bens a eles em seu testamento junto de sua esposa Catarina Paraguassu, chamada de "Matriarca do Brasil" sendo o primeiro casamento cristão conhecido no Brasil.
Catarina Paraguacu foi uma figura histórica; representou a uniao das duas culturas e sua vida deu origem a inumeras imagens criadas em torno desse processo civilizatório, especialmente por autores do seculo xix. Algumas destas representações permaneceram no imago da cultura brasileira, como a imagem da mulher indigena que, ao as cristianizar, ingressou na civilizacio ocidental. Consolidou-se na memoria construida em torno das mulheres indigenas como uma das mães do povo brasileiro.
Sua vida foi longeva, sobrevivendo a seu companheiro Caramuru por muitos anos. Viveu tempo suficiente para promover bons casamentos entre seus filhos e membros influentes da Corte.
Paraguaçu teve quatro filhas, que deram origem as mais antigas famílias da Bahia: Ana Álvares, casada com Custódio Rodrigues Correia, de Santarém, Portugal; Genebra Álvares, casada com Vicente Dias de Beja, do Alentejo, Portugal; Apolônia Álvares, esposa do Capitão João de Figueiredo Mascarenhas, da cidade portuguesa de Faro, no Algarve, e Grácia Álvares, casada com Antão Gil, de Évora, Portugal. Genebra Álvares era mãe de Diogo Dias, que se casou com Isabel D'Ávila, filha de Garcia D'Ávila, dando origem ao maior latifúndio que se tem notícias no Brasil.
Faleceu, em 26 de janeiro de 1583, e foi sepultada na sua Igreja, doada por ela aos beneditinos do Mosteiro de São Bento. Até hoje, a Igreja da Graça permanece subordinada ao Mosteiro, que guarda o testamento original de Paraguaçu.
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4 comentários:
Excelente!
👏👏👏👏
Muito bom.
Gratidão infinita ao anônimo e a amiga Sonia Sant'Anna pelos comentários! Um abraço!
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