quinta-feira, março 28, 2024

Cadê Você, Manoel das Moças

De manhã, bem cedinho, lá estava ele na Linha 2 da Estação do Matadouro, catando carvão coque. Depois, saco encardido às costas, partia para a venda mercadoria, combustível indispensável para as donas de casa da época (óleo e querosene andavem racionados, por causa da Segunda Grande Guerra). Magro, meio assustado e desconfiado, Manoel das Moças lembrava os escravos dos livros de História do Brasil, pintados por Debret e Rugendas, ou o velho Pai Tomás, da obra de Harriet Beecher Stowe. Tinha aparência e maneiras esquisitas, estranhas e meio assustadoras, até. Mas era inofensivo, "chapa" da gente, como se dizia naquele tempo. Nunca se soube tivesse esboçado um gesto, sequer, de violência. Só era surdo como uma porta e não gostava muito de falar, ou melhor, de resmungar. Agora, rir era com ele mesmo. Ria à toa e de tudo, mesmo se a gente o chamasse de macaco, de boboca, (na base da brincadeira, claro). Sem entender patavina, ele desandava a rir, ria que não acabava mais.

Outra coisa que Manoel das Moças gostava de fazer - e o fazia com muita frequência - era espiar a Lua, através de um caco de espelho, para "ver a santinha Alzira, sua noiva, cercada por 7 dragões de fogo". E ele fazia questão que todo mundo olhasse o tal pedaço de espelho, ansioso por uma confirmação. E a gente confirmava, naturalmente, porque a ninguém interessava destruir a sutileza daquela fantasia maravilhosa.

À tarde, o bom crioulo zanzava pelo Comércio, (era assim que a gente chamava a Rua Felipe Cardoso). Ali havia meios de ganhar novos trocados, carregando embrulhos, levando recados, etc. A alimentaçã era na base de um pão com salame no Seu Emilinho, uma fruta no Zé Carlos, uma cavaca na Confeitaria Royal ou uma média no botequim do Manoel Homem, isso quando não filava um prato de comida. E assim, catando carvão, carregando embrulhos, levando recados e, principalmente, mirando o caquinho de espelho para ver a Lua, Manoel das Moças ia vivendo.

Com o decorrer do tempo, notava-se que Manoel da Moças, notava-se que Manoel da Moças não era mais o "negão" ligeiro e disposto, cheio de vitalidade. Caminhava devagar, ofegante, demonstrando cansaço e desânimo. O saco com carvão coque lhe parecia pesar três vezes mais e os volumes que transportava, lá no Comércio, pareciam embrulhos de chumbo. Pobre homem!

Certa manhã veio a notícia: Manoel das Moças morreu. Muita gente foi até as obras de construção da nova igreja Matriz de Santa Cruz, onde ele andava dormindo, por trás de uns tapumes. Morrera de frio, enregelado. Junto do corpo, lá estava o tal caquinho de espelho, ainda embaciado pelo rigor da geada que acabara com o negro velho.

Alguns anos depois, os astronautas chegaram a Lua. Pena que o Manoel das Moças não tivera vivido até lá. Podia ter mandado um beijo para sua "santinha Alzira", ou uma rosa... sei lá.

Texto de Walter de Oliveira.

Fonte: Boletim NOPH 29 Maio / Junho. 1986.

Imagem retirada do Google.

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