domingo, janeiro 28, 2024

Memórias da Linha de Austin e do Conjunto Campinho

Por Leu Lima


Memórias escritas pelo amigo Leu Lima, que lembram de um passado vivido ou imaginado por ele. Várias histórias que primam pela qualidade das imagens e pelo fácil entendimento do texto escrito e que nos levam a refletir sobre a importância da preservação histórica e dos espaços geográficos que ainda resistem dentro da história de qualquer lugar. Espaço onde o autor viveu até a década de 1970.

São artigos muito interessantes sobre essa tão querida localidade. Artigos que nos fazem ficar com vontade de conhecê-la melhor. Artigos que aguçam a nossa curiosidade e nos deixam com vontade de preservar tudo de bom que as memórias contadas pelos seus moradores podem nos oferecer. 

Anteriormente a área onde hoje existe o Conjunto Campinho era ocupada por grandes laranjais e muitos sítios. Onde se plantavam e colhiam grande quantidade de frutas e uma grande variedade de legumes e hortaliças. Entre eles: aipim, jiló, quiabo, maxixe, amendoim, batata-doce, etc.

Quando comecei a ler essas histórias. Senti-me como se estivesse sendo transportado para um passado distante. Pois mesmo morando em Santa Margarida (desde 1981). Eu só passava em frente a Linha de Austin, sentido Avenida Brasil. Sendo que sobre o Conjunto Campinho eu nada sabia. Só passei a conhecer a localidade a partir de 1994. Quando comecei a trabalhar no CIEP Octávio Malta. Foi então que passei a andar pelas ruas do local ouvindo histórias de moradores e fazendo pesquisas históricas com alunos da escola sobre a Linha de Austin e sobre os antigos laranjais. Aos poucos fui percebendo a riqueza histórica do lugar. Percebendo que era um lugar muito carente e que faltavam muitas melhorias. Mas notava que havia um jeito simples e peculiar na forma de viver dos seus antigos moradores. Havia muita solidariedade, coisas tão difíceis de se ver hoje em dia. Foram essas maravilhosas histórias reais contadas por eles e pelo Leu Lima que me inspiraram a escrever este breve resumo. 

Lembranças do Tio Mané Tico:

Ao se deslocar durante a noite pelas estradas, caminhos e trilhas a pessoa tinha que redobrar sua atenção para não ser atropelado por cavalos ou bicicletas. A escuridão sempre era total na Linha de Austin. Para caminhar por ela com segurança, a pessoa tinha que ter os seus segredos. Cantar era o mais comum. Muitos davam gritos curtos de tempos em tempos e alguns simplesmente assoviavam suas canções favoritas, alertando sobre sua localização. Aqueles que faziam uso de bicicletas usavam uma buzina escandalosa como alerta. Fon! Fon! Fon!

Mané Tico, meu tio avô, era conhecido por suas batidas fortes e cadenciadas contra o chão duro da Linha de Austim. Usava a madeira de seus tamancos para socar ruidosamente o chão. Pleque pleque ... Havia certa harmonia em suas passadas, primeiro o barulho seco contra o solo e depois o estalido quando a madeira subia e se chocava contra o pé. Parecia o estalar de língua molhada ao beijar o céu da boca. 

Ao entardecer ele se dirigia até as Cinco Casas, onde colocava as conversas em dia e fazia suas compras, além de beber  cachaça.

De nossas camas escutávamos as batidas do tamanco do Tio Mané Tico regressando ao seu lar. Após passar por nossa casa, o som dos tamancos iam sendo engolidos pela distância, abaixando, até deixarem de ser ouvidos e por um determinado tempo o silêncio imperava. Não se escutava mais o Mané Tico.

Minha mãe aguardava com ansiedade ouvir o barulho da passagem do tio bêbado por cima da perigosa ponte. Ela tinha receio dele, bêbado, cair no rio Campinho. 

O concreto da bela ponte acolhia o par de tamancos com indiferença e frieza, e eles, os tamancos, empolgados e  inspirados triplicavam o tamanho do barulho. Todos os moradores da cercania  tomavam conhecimento da passagem vitoriosa sobre a ponte e só então minha mãe murmurava, "Graças a Deus" e ia dormir.

Certa noite as batidas não foram ouvidas sobre a Ponte dos Quinze Metros e todos acostumados aos pleque! pleque! pleque! do Tio Mané Tico, temiam que algo ruim havia acontecido.

Deve ter caído da ponte!

Pode tá estendido na estrada!

Será que morreu?

Pela manhã o mistério do silêncio sobre a ponte foi desvendado.

Mané Tico estava vivo e saudável e quando indagado sobre ninguém ter ouvido seu andar escandaloso sobre a ponte, ele respondeu: Estava muito bêbado mas não estava louco. Então na duvida eu passei sobre a ponte engatinhando.

Lembranças da Ponte dos 15 Metros:

Recordo com ternura as longas e agradáveis horas que costumávamos ficar sobre essa ponte, sentados em suas cabeceiras enquanto desfrutávamos do mágico entardecer diário e dos nossos inocentes risos. No meu coração, sinto como se fosse algo sagrado pra lembrar em cada momento da minha vida, gravado como fogo em minha mente.

A ponte, ainda com seu branco caiado original, se agarrava há uma das margens, parecendo um anjo caído e com asas quebradas prestes se afogar em seus próprios tremores. Pedaços de concretos expostos, ocupavam um trecho da Linha de Austim, enquanto seus ferros e aços eram coletados. Pareciam migalhas. Era o começo do seu fim ou o fim do começo que não vi chegando.

Fiquei duas horas com ela, fiz duas travessias e recebi quatro respostas. Duas fortes batidas no peito e dois suspiros saudosos.

Fechei os olhos e vi passar silenciosamente as lembranças de minha infância e juventude e imaginei chamar por meus amigos, mas o grito ficou aprisionado no peito, ali bem perto do coração que corcoveava como um cavalo chucro. 

Quando relembro meu passado sobre a Ponte dos 15 Metros, imediatamente eles surgem arrastando seus pés grossos e descalços. Aqui e ali vozes e risos claros e conhecidos me chamam pelo apelido, figuras de homens, mulheres e crianças que vivem no além das minhas fronteiras e razoes.

A olhei pela última vez e me afastei jurando não olhar para trás, Sabia que era definitiva aquela separação. Nunca mais volto aqui! Menti descaradamente.

Só sei que tenho uma vontade imensa de voltar lá e volto sempre.

Lembranças do Senhor Juquinha, o Padeiro da Linha Austin:

Aipim, batata doce, inhame e angu eram os acompanhantes de nossos cafés diários.  Uma vez e outra o bolo ou a broa eram servidos. Pão era somente em padarias de Campo Grande ou Cosmos.

No final dos anos 50, lá uma vez ou outra, aparecia o padeiro trepado em sua suada mula, uma cangalha prendia dois cestos, um de cada lado,  feito de cipós e sobre eles uma lona abrangia o par. Galopava e vendia seus pães na localidade de Saquaçu, Estrada do Furado, Linha de Cima, Cinco Casas e Linha de Austin. Quando alcançava a Linha de Austin os melhores pães já tinham sido vendidos, restando somente pães amassados, mal cheirosos e úmidos pelo suor do galopante.

O segundo Padeiro também era ocasional. Seus produtos a venda eram transportados por bicicleta e em dois cestos. Na dianteira da bicicleta o maior cesto abrigava a bisnaga de sal, o pão doce, pão provêncio, pão jacaré, pão de milho, bolos, variedades de queijo, pudins, sonhos, quebra-queixos, mariolas, etc. Esse era morador da Favela Vila São Jorge, no bairro de Cosmos. 

Fom! fom! fom! A buzina da bicicleta denunciava a proximidade do Padeiro matinal.

Seu Juquinha acabou mudando para Santa Margarida, quando foi alertado que sua casa próxima ao Viaduto dos Cabritos estava no traçado onde ia ser construída a Avenida das Bandeiras (atual Avenida Brasil). Como fazia o trajeto diário entre sua casa e seu local de trabalho no Km 32, na antiga Olaria, resolveu ganhar um dinheirinho extra nas vendas de pães. Na padaria do bairro adquiria seus pães e fazia suas vendas na Linha de Austim, Fazenda Indiana e na Olaria. Bastava avistar a sacola de pano pendurada nos portões ou cerca, que os pães eram ali colocados. O padeiro vinha acompanhado de um cão vadio, dócil e saudável, que fazia morada nas Cinco Casas, esse cão lhe acompanhava até a porteira de uma fazenda e dali então  retornava.

O pagamento dos pães podia ser semanal, quinzenal, mensal, ou até sem pagamento algum. Ele não gostava de olhar e ver crianças com cobiça de comer pão, sem ter a menor possibilidade de comprar. Seu Juquinha parecia babar bondade por todo o tempo e fazer suas avaliações sábias diante da incerteza. Era um ser extraordinário. Foi verdadeiramente o nosso único padeiro.

Lembranças do Zé das Moças e das raparigas:

Em Portugal rapariga significa mulher jovem, adolescente, mocinha. já no Brasil significa mulher puta, prostituta, vagabunda, vadia. O Zé das Moças era um personagem comentado em todas rodas de conversa e em nenhuma delas suas virtudes eram mencionadas. Era sempre motivo de caçoadas entre as viúvas e mulheres jovens com desejos de casamentos. 

A viúva Marieta, moradora mais antiga das Cinco Casas, sofria com as constantes brincadeiras dos seus filhos quando por qualquer motivo, demonstrava suas zangas e eles insinuavam um provável casamento com o Zé das Moças como remédio para melhorar seu humor e ela os xingava num palavreado carregado de plurais. "Vocês e o Zé das Moças vão tomar no ..."

Assim que plantou residência nessa região o jovem português Zé da Moças iniciou uma procura de companheira, já que não queria viver só. Embora ter sido alertado pelos patrícios que nunca deveria chamar mulheres brasileiras de raparigas, pois isso poderia lhe acarretar aborrecimentos futuros. Mas ele pouco se importou com o alerta e continuou a procurar a sua companheira. 

No principio ele recebia respostas grosseiras, depois alguns empurrões. Até que um dia deu de frente com o Zé Veludo que ao ser indagado sobre a existência de uma linda rapariga em sua casa respondeu-lhe que na sua casa só havia mulheres honradas e que ele teria que procurar companhia num puteiro. E então num gesto ligeiro e preciso acertou um "rabo de arraia" no peito do jovem conquistador, que se estatelou no chão. Esse episódio aconteceu  num campo de futebol onde hoje existe a Praça Mário Lombardi. O campo era torto já que ficava numa subida de morro. 

Com a clavícula quebrada o jovem português fugiu correndo até sua casa. Naquele dia nasceu o Zé das Moças e a palavra rapariga se escondeu bem fundo no interior de seu peito e nunca mais foi ouvida por quem quer que seja. Não era dado aos trabalhos braçais. Para cada tipo de esforço físico tinha uma dor específica. Munheca aberta, espinhela caída, dor nos quartos, ventre virado, dor no pé, esporão inflamado, etc. Nada no Brasil prestava e tudo de Portugal era melhor. Tinha voz fina num português carregado e irritante, o linguajar às vezes era difícil  de decifrar. Nos lábios tinha um sorriso permanente e irritante, que deixava dúvida se era de graça ou deboche.

Eu poderia enumerar outros causos sobre esse personagem. Mas prefiro imaginar sua solidão como uma punhalada cruel e brutal em seu coração. Sem amigos, colegas, parentes, sem amores. Acabou vivendo só, como vivem todos aqueles que recusam a aceitar as diferenças alheias.

O nascimento do Conjunto Campinho:

A imagem acima mostra o nascimento do Conjunto Campinho revelando no fundo as primeiras residências erguidas, onde antes era um laranjal e depois um campo de futebol. No lado direito, na cor azul, um detalhe da venda do Sr. Manoel Quintal e em primeiro plano a cerca da casa de Taninha Godoi (Suzana).

Lembranças de uma noite brilhante:

Quando a lua cheia voltava de férias, as noites naquele pedaço da Linha de Austin, era alegrada pela algazarra produzida pela molecada. "Bença madrinha Lua, que trás farinha na cuia", gritavam e pulavam de alegria. Quando a lua emagrecia e fininha ia embora a escuridão tomava o seu lugar, violenta e ameaçadora abraçava aquele mundo rural e a escuridão engolia tudo. Sendo que em sua garupa desembarcava o Lobisomem, a Mula sem Cabeça, o Saci Pererê, o Boi Tatá e todas as assombrações imaginadas. As noites eram longas e tristes.

Quando acontecia de um céu limpo, sem nuvens, os três garotos se encontravam num pequeno gramado em frente da casa do Seu Chico Meu Senhor e ali, deitados, ficavam observando o céu e as estrelas cadentes, além de fazer e fumarem cigarros feitos de palha e cabelo de milho. Ficavam tontos e algumas vezes vomitavam, mas nem tudo era pecado, era muito divertido o torneio para ver quem jogava mais longe a sua guimba.

Deitados na grama pareciam estar no topo do mundo e dali sentiam o vazio do tempo e a visão do espaço infinito, pontilhado de luzes azuis, amarelas, verdes, vermelhas. De longe dava para ouvir o apito e o trepidante ruído de algum trem, vindo dos lados de Inhoaíba ou Campo Grande.

Eles inventavam absurdas histórias de suas vidas e de outras pessoas, que acabavam se tornando reais, tão reais quanto o rio Campinho e a elegante Ponte dos 15 Metros.

Eles eram quatro amigos: os irmãos Hildo Beijola, Bimbinha e Pavão e o amigo Zé Boléu. Zé Boléu era o único branco entre eles. A idade variava entre 9 a 12 anos de idade. Beijola era o mais velho, sorridente, forte e responsável, Bimbinha sonhava ser motorista de caminhão e viajar pelo mundo, magrelo e alegre, tinha pressa no falar e acabava atropelando as palavras. Pavão tinha o cabelo carapinha, vermelho de tanto andar no sol, não era de muito falar, era meio enfezado e sorriso tímido. Zé Boléu era o único branco no grupo, amava seus amigos e era fiel. Eles se sentiam inteligentes, sabiam de coisas que somente os adultos tinham conhecimento, sabiam desses assuntos porque eram discretos ao ouvir as conversas dos adultos. Sabiam que na lua crescente se planta o aipim, batata e amendoim e na crescente o feijão. Sabiam que o abacate não amadurece na sua árvore, somente depois que é retirado. Sabiam que as estrelas que não piscam no firmamento, são planetas e que a Estrela Dálva não é estrela, mas sim o planeta Vênus. Sabiam da existência e localização do Cruzeiro do Sul, Ursa Maior e a Menor, etc. Também sabiam que onde haviam vagalumes a água era limpa e o ar era puro.

A fumagina surgindo como uma praga ameaçando todo o laranjal:

O Sr. Roque foi o único candidato para realizar essa empreitada de pulverização dos arbustos. O  veneno usado era muito perigoso para a saúde humana, para os animais domésticos e fatal para as aves e insetos, além dos poços e nascente. Era preciso fazer alguma coisa para impedir tal barbaridade, pois "elas" eram poderosas.

O esposo da Dona Marena Godoi, de tempos em tempos aparecia e desaparecia por entre as nuvens do fedido veneno "pó de broca", usando camisa de mangas compridas, calça, botas de borracha, chapéu de palha e lenço sobra o rosto, nas mãos meias.

Sr Roque sobreviveu e viveu por muitos anos, mas com um constante pigarro na garganta e uma ardência nos olhos que lhe fez companhia pelo resto da vida.

Assim que a Negritude chegou ouviram-se os gritos de Dona Amélia:

O céu estava nublado e a lua parecia não estar disposta a se fazer visível, não conseguindo furar a escuridão. A escuridão era tão negra quanto o melaço queimado. A noite fedia a "pó de broca". 

Dona Amélia era viúva e morava só. Seus três filhos raramente lhe faziam visitas. Era rezadeira e parteira de mão cheia, sobrevivia da lavagem e de pequenos reparos em roupas. Também era passadeira.

Em frente a sua casa existia um poço e ao redor havia uma abundância do capim melado, onde os vaga-lumes faziam morada.

Ao ouvir os gritos de Dona Amélia. Todos os vizinhos foram ao seu socorro.

No chão havia milhares de vaga-lumes que brilhavam e morriam. Dona Amélia chorava e xingava. Enquanto isso a noite fedia a "pó-de broca", assustando a Dona Amélia.

Não me lembro quem começou com aquela brincadeira. Alguns moleques pegaram os insetos brilhantes no chão e os esfregaram pelo corpo e em pouco tempo estavam banhados de luz. Pareciam a vida feita de luz. Eram a própria luz fedendo a pó-de-broca. Enquanto isso a noite brilhava através daqueles quatro corpos pequenos tão cheios de vida, com alegria, esperança e muita luz. 

Lembranças da antiga Escola Mista de Palmares:

Embora a legenda da foto nos diga que a localização do colégio ficava em Palmares. Eu tinha cá minhas dúvidas, sobre isso não ser o correto. Já que a Estrada dos Palmares assumia esse nome somente  depois do cruzamento com as Estradas do Campinho e Estrada da Paciência. Somente a região que ficava depois da Estrada da Paciência, era considerada Palmares.

O Colégio foi erguido nas terras do sítio da família Vicente na Estrada do Campinho onde hoje existe o número 6891. Há dez anos atrás eu estive no sítio acompanhado do seu proprietário e amigo Vicente. Visitamos e fotografamos tudo que restou do prédio. Mas infelizmente só ficaram os quatro degraus da pequena escada. Minhas tias e minha irmã estudaram nesse Colégio na década de 1940. Assim como muitas outras pessoas que ainda residem por essas terras.

No final dos anos 50 ainda era possível assistir a passagem barulhenta e movimentada das manadas bovinas se deslocando pela Linha de Austin com destino ao Matadouro de Santa Cruz:

Da Baixada Fluminense partiam para o Matadouro de Santa Cruz, provocando transtornos para as donas de casa e alegria da molecada. Um dos vaqueiros galopava na dianteira da boiada e aos gritos pedia para os moradores saírem da frente e fecharem seus portões e porteiras. 

A manada passava desorganizada e barulhenta entre mugidos, empurrões, cabeçadas e coices na enorme e fedorenta nuvem de poeira avermelhada. A gritaria dos vaqueiros pareciam cânticos que somente eles sabiam o significado. Eram homens simples, humildes, fortes e honrados. Garbosos e orgulhosos montados nas suas montarias. Após a passagem da manada, os vestígios deixados permaneciam esparramados pela Linha de Austin e o cheiro não era nada agradável  fazendo morada por dias seguidos. Seguiam pela Estrada do Campinho, Estrada de Paciência, Estrada do Furado até alcançar o Saquassu, Morro do Chá e Santa Cruz.

Lembranças do "Cão Tortinho" da Valci:

"Tortinho" era o nome do pequeno cãozinho adotado pela menina de nome Valci. O animalzinho era todo torto, tipo: fora de esquadro por ter sido atropelado por bicicleta quando ainda era recém nascido por isso recebeu o nome de "Tortinho".  Quando visto de frente dava a impressão de ser dois animais, um  ao lado do outro, já que a cabeça era desalinhada da parte traseira, mas mesmo assim ele era muito querido por todos na Linha de Austin. Era alegre e brincalhão, corria, latindo atrás das bicicletas, charretes, carroças, caminhões e cavalos. 

Um ano após sua chegada na nossa comunidade "Tortinho" recebeu um coice do cavalo montado pelo Sr. Osvaldo Mineiro, administrador da Fazenda Nova Ìndia, lá na localidade do "Cavalo de Pau", em Manguariba. "Tortinho" sobreviveu ao impacto do enorme manga larga, ficando  mais feio e mais torto e por isso passou ser chamado de "Torto Torto" e mais tarde, finalmente, por "Tortolho". Seu latido parecia uma mistura dos sons da cabra e da galinha. O olho direito dava a impressão de cair a qualquer momento, esbugalhado e dependurado na feia cara, já a  boca torta e aberta exibia uma língua úmida e vermelha, balançando pra lá e pra cá. Uma coisa horrível e engraçada. De tanto implicar com ele, fomos nos tornando inimigos mortais. Ele não podia me ver que tentava me morder e eu com uma fina vara de goiabeira, me defendia. Nossa convivência acabou se tornando um inferno. 

Lembro que eu estava com caxumba, tinha sentido dores e febre na noite passada. Por isso era vigiado por meus pais e meus irmãos para evitar minhas travessuras, pois qualquer esforço poderia fazer com que a caxumba se deslocasse para as minhas partes baixas e tal coisa me deixava apavorado.

A chuva já tinha ido embora, deixando tudo muito limpo e brilhante. A terra úmida e o ar estavam impregnados pela fragrância do laranjal em flor. Na varanda minha família aguardava a hora mágica da chegada do crepúsculo.

Aproveitei a distração coletiva e me dirigi ao meu observatório oficial, que ficava numa elevação nos fundos da casa do "Seu Chico Meu Senhor", o nosso mais próximo vizinho.

Entardecer bonito é aquele onde há muitas nuvens no céu e aquele crepúsculo prometia efeitos múltiplos de cores. O vento sudeste amainou, e o céu de um cinzento cor de chumbo começou a clarear, enquanto as sombras se deslocavam a todo a todo instante, aparecendo e desaparecendo.

Tão distraído estava com as danças das nuvens que não percebi sua aproximação cambaleante e incerta e ao identificar o personagem, eu gelei e me encolhi, imaginando ser atacado por um inimigo declarado. "Tortolho" foi se aproximando e sentou do meu lado, encostando-se a minha coxa e ali ficou vendo a natureza divina se manifestar. Levemente toquei seus pêlos e isso lhe pareceu ser agradável  e ali ficamos um ao lado do outro. Será que agora seremos amigos? Será que ele resolveu ficar meu amigo agora?

Ficamos sentados em silêncio, vendo o sol passar de amarelo a rosa na medida em que ele descia, com bandos de andorinhas numa revoada sobre o laranjal perfumado e limpo. Até que finalmente a cores do sol explodiram em marrom, vermelho, cor de abóbora, rosa, amarelo e púrpuro.

Os olhos tortos do Tortolho pareciam nunca ter visto um entardecer mais lindo que aquele. Assim ficamos a contemplar a noite engolindo o dia lentamente. Agora éramos amigos. Finalmente.

E não é que no dia seguinte acabei levando duas mordidas do "Tortolho". Uma no calcanhar direito e outra na nádega esquerda. Aí então fui sentindo que a magia do entardecer havia desaparecido junto com o último raio de luz do dia anterior.

Lembranças do filme Os Três Cangaceiros:

No fim dos anos de 1950 o que mais me atraía nos cinemas era os barulhentos faroestes americanos e as divertidas comédias nacionais. Mazzaropi, Zé Trindade, Ronald Golias, Ankito, Oscarito e Grande Otelo eram inigualáveis nessa arte da diversão. Multidões se aglomeravam na frente dos cinemas para verem seus ídolos nas telas.

Então imaginem o espanto ao me deparar com Golias, Ankito e Grande Otelo caminhando na Linha de Austin seguidos por dezenas de profissionais da arte do cinema. Estavam escolhendo lugares apropriados para construir cenas do filme. Alguém sugeriu uma cena de perseguição tendo a Ponte dos 15 Metros como cenário ou a Linha de Austin tendo o morro do Alemão como fundo. Mas então alguém opinou contra, pois a luz não ajudaria. 

A cena do enforcamento foi filmada nos fundos de minha casa. Já em terras do Sítio do Sr. Boia. Perseguição e captura da mocinha, com muitos tiros e gritaria, foram no interior da Fazenda Indiana (atual Fábrica de Cervejas). Outra cena foi feita nos pastos próximos onde hoje se localiza o Viaduto dos Cabritos.

O tempo gasto nessas 3 cenas foram exageradamente longos. Aviões, buzinas, bois, latidos de cães, tombos, gargalhados e erros nas falas contribuíram para toda essa demora. Ankito chegou até me chamar atenção sobre a falta de curativos em minhas feridas dos pés e pernas. 

Imaginem vocês a minha emoção de assistir o filme no cinema e pensar bem baixinho. "Eu estava lá". Eu ajudei carregar os instrumentos para essas cenas. Ankito até brincou comigo, tocando em meus cabelos topetinho. Era o ano de 1958 e eu tinha apenas 10 anos.

Lembranças do meu cão chamado "Não Digo":

O pequeno cachorro faminto chegou pelas mãos de minhas primas numa visita a minha casa. Elas o encontraram na subida do Morro do Alemão na trilha de ligação entre as Estradas de Paciência e Campinho e logo então foi organizada uma reunião para dar um nome ao animal. Toda vez que eu era indagado, respondia simplesmente. "Não digo". Conclusão: O cão acabou sendo batizado por todos de "Não Digo". Acabou se tornando o melhor amigo que eu podia imaginar. Passando a me defender de tudo e de todos.

Minhas lembranças do Mercado de Madureira:


Três vezes por semana meu pai se deslocava até o Mercado de Madureira para vender nossa produção colhida no dia anterior. Havia um caminhão que recolhia e embarcava nossas caixas no entardecer das segundas, quartas e sextas-feiras. Meu pai acordava às 00 horas e pedalava até Campo Grande. Onde embarcava no trem de 01 hora. Às 02 horas, já estava em Madureira, onde dava início as vendas. 

Lembranças de um assaltante:


Em 1960 um perigoso bandido apavorava nossa região. Além de assaltos, praticava atrocidades ao mandar suas vítimas escolher sua tortura. Beliscão ou mordida era as opções. O bandido usava um alicate para ferir o assaltado. 'Vai Contando e Vai  Me Dando". Assim ficou conhecido o bandido, pois essa era a única forma de saber o quanto ele lucraria com sua malvada empreitada.

Praticava assaltos por toda região, onde até os relatos das vítimas se contradiziam. O bandido era magro, gordo, negro, branco? Dependendo do contador. O bandido fazia a imaginação de cada um delas viajar e atravessar fronteiras. Ocupando e alimentando o imaginário de todos.

Aos poucos o bandido "Vai Contando e Vai Me Dando" foi sendo esquecido até que desapareceu por completo daquele nosso ainda tranqüilo mundo rural.

Lembranças da viagem noturna ao Mercado de Madureira:

Era meia noite quando minha mãe me acordou dizendo que eu teria que substituir meu pai nas vendas no Mercado de Madureira, pois ele estava doente.

Eu já tinha ido ao mercado com ele algumas vezes, só que na carroceria do caminhão. Nunca tinha viajado sozinho durante a noite. Ainda mais com aquele perverso assaltante solto pelas estradas. Eu estava apavorado.

Convidei meu amigo fiel a me acompanhar até Campo Grande e ele aceitou. Agora não estava mais sozinho,  tinha o "Não Digo" ao meu lado. Ao pedalar na Linha de Austin me sentia em casa, seguro entre amigos, mas ao alcançar as Cinco Casas a confiança desaparecia. Eu era um menino criado sem medo. Me ensinaram muito cedo a ter coragem. Não era covarde, mas a noite estava escura como um breu, sem estrelas no céu e sem vento. A estrada parecia um monstro querendo me engolir, me humilhando e me sufocando. Eu estava com muito medo de ser assaltado, medo da noite. Cheguei a chorar enquanto pedalava.

O cão gostou da aventura noturna e me acompanhou até meu embarque na Estação voltando pra casa. Com o tempo se tornou hábito dele em acompanhar todos até Campo Grande. Até que certo dia não voltou para casa. Será que havia esquecido o caminho de casa? Fiz muitas buscas pelas margens da Estrada do Campinho até o Viaduto, além das valas, bueiros e manifestações de urubus. Tudo em vão, havia perdido o meu melhor amigo. 

Três anos depois "Não Digo" voltou a Linha de Austin trazendo no pescoço uma coleira de couro e uma plaqueta de metal, onde estava escrito "Boby" e um certo número de telefone.  

Se as palavras bondade, fidelidade, camaradagem e amor tivessem um rosto. Esse rosto seria do meu cão "Não Digo". Ele morreu alguns anos depois, velho e sem dor, cercado de carinho. Foi sepultado entre um pé de laranja lima e um limoeiro na Linha de Austin. Até hoje quando passo pelo local presto a minha homenagem silenciosa a ele.

Nas férias de verão de 1960. Eu e dois amigos conseguimos um serviço de empreitada para trabalhar no Sítio da família Grillo. O Sr. Antônio Preto era o administrador e atendeu o apelo do Hildo Beijola que convidou o Bimbinha, seu irmão mais novo:

No dia seguinte levantei muito cedo  para iniciar a labuta. Minha mãe preparou minha marmita e colocou no bornal e de posse da uma enxada mergulhei entre os pés de laranjas pela trilha ali existente. Em fila indiana avançamos até desembocar na rua do Odorico (Rua Frei Timóteo). Hildo Beijola, Bombinha e eu éramos a imagem da felicidade. Éramos amigos de verdade. 

Quando chegamos ao destino vimos o menino Dadá vindo em nossa direção, era fácil de perceber seu abatimento. Estava procurando trabalho, já que seu pai estava impossibilitado de trabalhar, tinha sido operado recentemente e em nenhum lugar havia encontrado serviço e dito isso, se foi embora levando a velha e gasta enxada sobre o ombro. Com os olhos tristes.

Sem que uma única palavra fosse dita, somente nos olhamos, Bimbinha gritou alto o nome do menino. Dadá vai embora não! Vem trabalhar com a gente e dividimos o dinheiro. Você aceita?

Dadá não era amarelo, vermelho, branco ou preto, era cor de cobre. Tinha os olhos extremamente azuis sobre a cara de expressão africana. Os olhos eram atentos, parecendo imaginar criaturas ao seu redor, observando-o com olhos de maldade. Era atento o tempo todo. Seus cabelos eram cortados à máquina zero até a altura das orelhas. No alto da cabeça um ridículo tufo de cabelos carapinho louro se exibia, brilhando na luz do sol. Acho que ele era o resultado de todas as raças.

Na primeira enxadada contra o solo, as risadas invadiram o pomar e toda  vez que a enxada do Hildo Beijola beijava a terra, o som de um peido era ouvido.

Dadá era famoso por ter controle absoluto dos seus gases. Dos seus puns.

Foram 8 dias de diversão e aprendizagem. Cantorias de rimas, desafios e piadas.

"Uma, duna, tena, catanás, sinsig, bananais, péspés, conta, nona e dez"

"Eu vi na areia um casal de camarão fazendo coisa feia."

"O camarão..... vestido de branco e azul sentado num banco a porta de ..."

O que aprendi com ele ficou guardado lá no fundo da memória. Iria ensinar meus filhos e netos.

A luz do sol já se despedia naquela tarde de sábado quando Dadá adentrou na venda do Sr Manoel Quintal, nas Cinco Casas, para comprar querosene. Ao sair foi chamado pelo Sr. Zé de Souza,  proprietário do sítio, onde hoje existe o CIEP Otávio Malta, que lhe fez um desafio, daria certa quantia em dinheiro caso conseguisse dar 30 peidos seguidos. O Sr Tônico Pimentel propôs dobrar  a quantia pelos puns do menino.  Dadá aceitou, desde que os peidos fossem finos e curtos e então Dadá deu início ao show, fingindo ter que engolir determinada quantia de ar pela boca, já que o ar pelo nariz ia para os pulmões. Um cercado humano foi criado em volta do menino, enquanto a apostas iam sendo realizadas. Dramatizando sua apresentação fingia grande esforço e preparo. Iniciada a série de peidos, a contagem pelo público começou. 

10, 11 ...

Dadá fazia caras e bicos enquanto os puns eram libertados.

27, 28 ...

Ao alcançar a quantia combinada a multidão explodiu em gritos e abraços. Com muitas risadas sendo dadas. O tempo passou e Dadá sumiu de minhas vistas. Nunca mais dele soube notícias.

O celular toca e na mensagem de vídeo o rosto amado de minha neta primeira. Thayane: 

"Vô feliz aniversário. Seu bisneto Vicente tem um presente pra você "

Vicente tem somente dois anos.

No vídeo a imagem pequenina e delicada do meu coração fora do peito. “Vicente fala ...”

"Una duna, tena, catanás, sinsig, bananás, pespés, conta, nona é dez"

Desabo de vez!

Minhas lembranças da "Mãe do Ouro":

Grande número de meus amigos recusa comentar sobre a "Mãe do Ouro", receosos de serem taxados de mentiroso ou de loucos, mas eu pouco me importo, afinal, "ela" sempre  participou de minha infância e adolescência e aos 73 anos de idade me dou ao direito de narrar que ouvi, vi e vivi. 

Era constante suas aparições noturnas sobre os campos e laranjais da região,  estávamos tão acostumados com "ela" que dávamos pouca importância as suas visitas. Era corriqueiro.

A misteriosa luz se refugiava no morro do Sr Faed (primo ou sobrinho do Sr. Salim), da Estrada do Tingüi.  De minha casa na Linha de Austin, tínhamos uma visão privilegiada da elevação de onde a Mãe do Ouro iniciava e terminava suas excursões. Todos a viam, serena e majestosa vagando pelo céu.  Em algumas ocasiões "ela" se comportava de modo diferente. Dividia-se em duas, quatro ou seis e  desaparecia para reaparecer em outro local distante. Muitas vezes como brotando da terra.

Com o passar do tempo as aparições foram rareando. Meu pai dizia que o progresso a estava expulsando.

O baile na casa do Sr. Daniel, sítio do Sr Antônio Boia, onde a sanfona, o pandeiro e o bongô vibravam no ritmo calmo do bolero, no sonolento e romântico samba canção e do apressado e rodopiante calango, terminou por volta de 3 horas da madrugada daquele sábado de 1973 e quando estávamos regressando aos nossos lares, eu e meu amigo Moacir Clemente, sobre a Ponte dos 15 Metros fomos surpreendidos pela aparição da Mãe do Ouro que em movimentos diversos sobre os campos da Fazenda do Cabral se exibia, brilhante. O incrédulo amigo que tanto me zoava ficou como petrificado e depois apavorado. Por mais de uma hora assistimos o bailado da luz diante de nossos olhos. "Ela" ia até o Tingui em grande velocidade e em seguida voltava serena, quase beijando as águas do Rio Campinho. Vagarosamente vadiava sobre o laranjal e coqueiral do Chico Ruas até alcançar os limites de Santa Margarida. Desaparecia e aparecia ora no Sítio do Boia ora na Fazenda Indiana. Foi a última vez que ela se exibiu pra mim. Nunca mais avistei a Mãe do Ouro.

Lembranças do Reduzine:

Reduzine possuía poderes extraordinários. Podia se transformar no que quisesse, em ave, em toco, em vento.

Era também chamado Reduzido ou Reduzeni. Pertencia a uma família de benzedeiros rezadores. Sua mãe tinha o nome de Nat e seu pai chamava-se Tongo. Redigum era seu irmão mais novo.

Reduzeni era homem alto e magro, barba e cabelo sempre por fazer, bem apessoado, elegante ao se movimentar e andar. Possuía um linguajar pitoresco, costumava chamar as pessoas com seu nome completo. Era encantador mas podia se transformar numa serpente. Era ao mesmo tempo um "encantador" da serpente e a própria serpente. Ele podia, com um simples olhar, causar mais desconforto do que um batalhão de formigas numa mesa de doces em aniversário de criança. Amava tudo que germinava na terra, até mesmo as ervas daninhas. Afirmava falar 3 idiomas, Francês, Nina e Brasileiro.

Costumava falar: "O que é tocado pela mão do homem não pode ser eterno", "Não peça opiniões de ninguém, descubra por você mesmo". "Procure o lugar onde a felicidade gosta de morar e se muda pra lá". "Sem humildade não existe sabedoria".

Curava doenças do corpo e do espírito. Rezava, benzia e doava suas folhas, raízes, cascas, flores e sementes armazenadas num enorme bornal que portava atravessado ao peito. Entre tantos cheiros agradáveis a canela se destacava. Reduzeni tinha um cheiro da canela.

Abaixo vou narrar o que ouvia dos antigos sobre os poderes desse homem. Afirmo que não os presenciei, mas lhes garanto que era um ser diferente. Poderia preencher dezenas de páginas narrando coisas que presenciei tendo ainda hoje testemunhas para confirmar e outros causos que não me arriscaria a relatar. Pois eu mesmo não tenho certeza se realmente tais fatos ocorreram. Então, vamos deixar pra lá!

Um Policial queria desfazer romance com uma jovem e bela amante e para isso propôs seu  "desaparecimento" ao Reduzeni e por este foi negado. O policial enfurecido pela negação resolveu se vingar, perseguindo, abordando e o humilhando. Foi quando o benzedor resolveu reagir a sua maneira na presença de várias pessoas dentro do único armazém do local.

O "Armazém das Sete Portas" ficava na Estrada do Campinho com Estrada de Paciência, naquela época esse armazém era o único da região. Os outros mais próximos ficavam em Cosmos, Inhoaíba ou na Estrada do Campinho. Dentro do Armazém, Reduzeni falava para dezenas de ouvintes. Foi quando um grupo de policiais entrou no recinto e ficaram surpresos ao ver um monte de pessoas ao redor de uma gaiola com um curió cantante. Todos ficaram muito espantados ao testemunharem o Rezador imóvel e murmurando preces, enquanto os policiais indagavam o paradeiro do mesmo.

Vários outros relatos afirmavam o poder do homem com cheiro de canela. Certa vez ele se transformou para os policiais, na Linha de Austin, esquina com Estrada do Campinho, em um toco de madeira queimada, até que um dia se permitiu ser visto e foi detido por portar um canivete. No armazém do Sr. Sandóia, na Estrada da Tutóia com Estrada de Inhoaíba, recebeu voz de prisão, sendo algemado e colocado no camburão onde já haviam dois outros detidos. 

Na Delegacia o alvoroço foi grande, quando anunciaram a captura do rezador. E foi uma enorme surpresa quando abriram as portas do carro da polícia. Lá dentro estavam somente os dois primeiros detidos. Reduzeni não estava entre os presos que juravam que o rezador nunca havia estado ali. No assoalho da viatura, estavam apenas as algemas, enquanto o cheiro das ervas medicinais impregnava o automóvel, a Delegacia e a rua. O Policial então pediu transferência e nunca mais voltou a Campo Grande. Sim, Reduzeni possuía poderes extraordinários! Podia se transformar naquilo que ele quisesse. Em ave, em toco, em vento. Pelo menos era isso que muitas pessoas diziam.

Foto feita em 1965. Em frente da Casa da Dona Morena Godói na Linha de Austin, Próximo do atual número 112:

Algumas dessas crianças, hoje pais, avós e bisavós, nunca deixaram de residir na Linha de Austin e ali como seus pais, foram construindo suas famílias.

Uma dessas meninas da foto se tornou próspera proprietária de muito sucesso no ramo praticado. Enquanto outra viveu e morreu sem ter conhecido o paladar adocicado da felicidade. Mas todos se tornaram adultos honrados, trabalhadores orgulhosos de seus passados humildes entre os laranjais da Linha de Austin.

Lembranças de um laranjal na Estrada da Posse:

Ao fundo o morro do Marapicu e a Serra do Mendanha. Anos 1950.

No final dos anos 1950 as brincadeiras de bola, tipo "peladas" eram disputadas na Estrada do Campinho, nas Cinco Casas ou na Linha de Austin, em frente à casa da Dona Morena Godoi. Lembro que em 1969 construímos nosso primeiro campo de futebol, tendo como vizinhos a Ponte de 15 Metros e o Rio Campinho num terreno onde havia uma plantação de laranjas. Essa localização tinha um inconveniente, não havia água potável nas suas proximidades. No início dos anos 1970 abandonamos o primeiro campo e construímos outro nas Cinco Casas. Ficava bem atrás da venda do Senhor Manoel Quental. Tínhamos um novo campo, água da bica e muitas comemorações com refrigerantes e cervejas.

Ao iniciar as obras do Conjunto Campinho esse campo foi abandonado e construído um outro. Onde hoje está localizado o CIEP Octávio Malta denominado de Baliza Azul. (Eu não participei dessa construção, pois já não morava mais na localidade).

Na fotografia acima, do início dos anos 70, a imagem de dois jovens residentes da Linha de Austin, que ajudaram na construção desse campo de futebol. Jovens honrados trabalhadores, nenhum deles se desviou da responsabilidade e honestidade. Um desses jovens num futuro distante e imaginável. Acabou se tornando sogro de meu filho. Um deles teve participação marcante e ficou conhecido no Brasil e no mundo. Sendo objeto de estudos e pesquisas. Se você for curioso procure por Arquivo OVNI: O caso de Paciência.

A Família Grillo freqüentava o seu sítio semanalmente, mas era nas férias escolar que essa permanência se tornava mais prolongada:

O patriarca era um médico chamado Dr. Esperidião que quando vinha ao sítio, mandava anunciar atendimento a todos que ali comparecessem. Na espaçosa varanda, uma variada e saborosa merenda era servida para todos. Após a consulta os remédios eram doados e alguns pacientes, eram encaminhados para um determinado hospital ou médicos. Todos recebiam suas cartas de recomendações. A casa do Sítio ainda está lá. Fica do outro lado da Av. Brasil, bem próximo da passarela.

Lembro de uma certa ocasião que um carroceiro trafegava pela linha de Austin, trocando pintos por garrafas onde hoje fica a praça e a Rua 23. Quando de repente houve uma explosão e o cavalo coitado, assustado, arrebentou a cerca no peito e disparou por entre as plantações destruindo tudo que tinha pela frente. Foi encontrado no meio do laranjal assustado e ferido. A carroça se desfez em pedaços e muitos pintinhos morreram, alguns foram encontrados vivos dias depois.

Sobre o nosso céu era comum a presença constante dos aviões da Base Aérea de Santa Cruz fazendo suas piruetas durante horas seguidas. Dificilmente não se avistava aviões no céu, todo tempo lá estavam eles, em formação variadas. Esquadrilha com suas asas em cor de abobora voavam em formação elegante de cunha para em seguida mergulhar no vazio como suicidas fossem, mas de tempo em tempo um grande estrondo era ouvido por todos, era quando o jato chocava-se contra a barreira do som em altíssima velocidade. Já até estávamos acostumados.

Uma das filhas da Família Grillo iniciou namoro com um oficial da Aeronáutica e certa vez ele plantou o imenso e barulhento helicóptero sobre a sede do sítio e dele lançou inúmeras flores sobre a amada, a partir daquela data, a presença dos aviões se tornaram quase que diárias e os rasantes sobre a casa se tornou uma rotineira , assim como a variedade de aeronaves usadas,  até mesmo avião a jato foi empregado nas estripulias aéreas e amorosas.

Quando isso acontecia a molecada sabia pra onde ir e em desabalada correria rumavam para a Ponte dos 15 Metros. Sabiam que antes de ir embora, o piloto guiaria a máquina voadora na direção deles e em seguida retornaria, balançando as asas de um lado para o outro e culminando em manobra onde era possível avistar o piloto em seu assento, seus óculos, capacete e o braço acenando para a gurizada, para em seguida ir desaparecendo, desaparecendo, desaparecendo, no azulado horizonte, lá para os lados de Santa Cruz.

Uma anotação de 53 anos atrás. Que eu fiz em 12/11/2020:

Ônibus passando nas Cinco Casas. Linha de Austin em festa!

Lembranças da parteira da Linha de Austin:

Ela era esposa de Benedito Madalena, mãe de dúzia de filhos e avó de dezenas de netos. Morava na Linha de Austin, quase na porteira da Fazenda Indiana.

Era a parteira mais solicitada nas redondezas. Na Linha de Austin havia duas parteiras, uma delas era a Dona Amélia e a outra era a minha avó.

Quando o parto era próximo e durante o dia, eu era convidado para ir com ela e testemunhei certa vez uma cena que mexeu comigo, era a imagem de minha vó murmurando, enquanto erguia o recém-nascido acima de sua cabeça. 

Nasci nas mãos de minha avó e ela dizia que fui a única criança que não foi preciso ganhar palmadas. Ela dizia que eu já nasci chorando.

Ainda vou te dar uma palmada um dia, prometia ela.

Ela se gabava de nunca ter perdido um anjinho  porque sabia respeitar a natureza e o tempo da criança. Dizia que mulher de anca larga era ótima parideira. Usava roupas imaculadamente limpas, passadas e borrifadas por álcool. Falava que por duas ocasiões, fez seu próprio parto, o primeiro quando catava lenha e por não possuir anáguas por baixo do vestido agasalhou o criança em folha de bananeira e a segunda vez ao colher café.

Quando solicitada, caminhava da Linha de Austin até Cabuçu de Nova Iguaçu, Jesuítas, Cosmos, Inhoaíba, Paciência, algumas vezes em carroças ou charretes. Por cada parto feito era presenteada com uma dúzia de ovos, uma galinha, banha de porco, doces, etc. Naquela época tudo era difícil e longe. Hospitais somente havia em Campo Grande ou Santa Cruz e o percurso tinha que ser feito praticamente a pé, já que não havia condução. 

Nos anos 70 com ela já bem velhinha. Fui buscá-la para morar em minha casa e então permiti que ela me desse aquela palmada tão desejada. Também indaguei sobre o que ela falava enquanto erguia as crianças.

Ela me respondeu: "Meu Deus, aqui está o seu mais novo servo. Servo aqui está o seu único Deus." 

Minha avó nasceu no dia 13 de Maio de 1888, era neta e filha de parteiras. E foi a Dindinha de todos os seus netos.

Lembranças do trem elétrico no Conjunto Campinho:

Até a década de 30 funcionava uma linha Ferroviária que ligava Santa Cruz à Austin na baixada fluminense. Foram construídas quatro casas como serventia de moradia para funcionários da manutenção e depósito de material, uma quinta construção, bem maior, como estação. Todas essas construções ainda se encontram de pé, servindo como moradia na localidade conhecida como "Beco" onde antes eram as "Cinco Casas".

No final do século passado, exatamente em 1983, se imaginou ampliar nossa rede ferroviária e revitalizar outras, inclusive a Linha entre Austin e Santa Cruz.

Se isso tivesse acontecido. Acredito que a geografia do Conjunto Campinho seria totalmente diferente.  Será que haveria viadutos sobre a Estrada do Campinho e a Avenida Brasil? A Famosa Ponte dos 15 Metros seria preservada? Será que a antiga Estação seria ampliada? Fica aqui espaço aberto para ser ocupado pela indagação e pela imaginação!

Lembrança dos meus primos Zeca e Joaci:

Era um domingo e a imagem mostra dois primos meus, Zeca e Joaci. A terceira pessoa ao longe sou eu atrapalhando o foco do fotógrafo. A foto é de 1958 no entroncamento da Estrada do Tingui com a Linha de Austin. Ao fundo o morro que foi cortado para construção da Avenida Brasil, atrás dele a antiga Estrada Rio São Paulo e o Viaduto dos Cabritos.

Quando o Sino do Boia era o marcador do tempo:

Sem relógios ou rádio para saber o tempo, era uma questão de sabedoria e observância para descobrir o horário de início da  lida diária, do almoço e o término dos trabalhos. 

Minha mãe colocava uma série de pequenas pedras no chão e a sombra da casa se encarregava de denunciar a  hora. Ela aproveitava os relógios das visitas para colocar suas pedras, mas nada se podia fazer nos dias nublados ou chuvosos.

O som salvador vinha do sino tocado lá na casa do Senhor Antônio Boia. Na verdade não era um sino, mas um pedaço de trilho de trem. O sino era tocado quatro vezes ao dia. 7 horas para iniciar os trabalhos, 10 horas para o almoço, 14 horas para o café  e 16 horas para o encerramento dos trabalhos. As badaladas, levadas de carona pelo vento, eram ouvidas em Palmares, Cinco Casas, Toda a Linha de Austin, Santa Margarida, Tingui e boa parte da baixada do Quilômetro 32.

Muitas vezes fui convidado para tocar aquele sino e em todas me sentia possuído de grande vaidade e poder. (não era somente bater no frio pedaço de aço, uma cadência tinha que ser seguida, pausas respeitadas e profundo respeito pelo silêncio que seria quebrado). Com as badaladas eu ordenava centenas de rudes homens para encerrar seus trabalhos. Ordenava suas esposas a apressar o jantar. Ordenava a namorada a se embelezar. Era o som da esperança.

Lembranças do Caboclinho:

Quando meus pais chegaram nessas paragens em 1946 já o encontraram. Morava em rústica cabana de palha, sozinho, em terras da Fazenda do Cabral. Caboclinho evitava as estradas preferindo as matas, pastos e plantios. Era arredio e de fala mansa. Todos o chamavam de Caboclinho por desconhecer seu verdadeiro nome.

Os antigos afirmavam ser ele filho de um casal de índios que em deslocamento para Angra dos Reis teve seu pai mordido por uma venenosa cobra, vindo a falecer e para não abandonar a sepultura, mãe e filho fizeram daquela mata o seu território. Anos depois aconteceu a morte da mulher índia, deixando aqui o seu único filho que se chamava Caboclinho.

Caboclinho era o pavor entre a criançada, todos tinham medo dele, incluindo eu. Seu aspecto era ameaçador. Nada cobria seu peito, somente uma calça era usada por ele. Cabeleira atingindo os ombros descalço, porrete na mão e o afiado e longo facão na cintura. Era muito fácil vê-lo cruzando a Linha de Austin. Gostava de ficar sentado na cabeceira da ponte, traçando seus cipós. 

Vivia da caça e da pesca. Invadia sem a menor cerimônia as plantações e colhia o seu almoço, até mesmo o leite era tirado das vacas e bebido na hora por ele. Era mestre na arte da cestaria. Samburás, balaios, jacás, cestos e peneiras de bambus feitos com  cipós de tamanhos variados além de construir cordas de couros e esteiras de taboas. 

Dificilmente freqüentava locais de aglomeração, evitava dirigir palavras as mulheres e crianças. Comia tudo que andava sobre e sob a terra, tudo que voava ou nadava. Gostava de música, construía suas flautas usando o bambu e ossos de perna de garça, ave muito abundante nas margens do Rio Campinho.

Era artesão talentoso ao reproduzir animais e aves no barro tabatinga. Foi ele que me apresentou o mundo das artes. Em 1991 voltei naquelas matas e localizei vestígios de sua cabana. Achei o que era meu e o presente que havia me prometido. Para todas as pessoas ele era somente o Caboclinho.

Lembranças da Dona Ita e da Ponte dos 15 Metros:

Nesse degrau havia uma data gravada em baixo relevo. 1938. Era dessa ponte que eu assistia o sol se esconder por detrás das montanhas distantes. A brincadeira de adivinhar a cor do carro que se aproximava na recém inaugurada Avenida Brasil. Local das conversas juvenis, onde os desejos e a esperança se manifestavam nos sonhos sonhados. Nessas cabeceiras de concreto, beijos e juras de eternos amores, trocados. Local onde os espíritos, as assombrações e os medos faziam morada.

Fronteira, respeitada pela serena "Mãe do Ouro"

Ho Dedé, a Mãe do Ouro veio de longe pra me ver.

Ho Dedé, a Mãe do Ouro atravessou o mar pra me ver

Ho Dedé, a Mãe do Ouro veio da África pra me ver

Ho Dedé, a Mãe do Ouro veio de Angola pra ver

Era assim que cantava a Dona Ita ao avistar o candeeiro mágico, flutuando na luz azul sobre os laranjais floridos e perfumados.

Na foto abaixo a segunda morada da minha família na Linha de Austin. Nela lembro-me do meu pai, um homem honrado e trabalhador, sobrevivente de uma vida difícil e sofrida. Tinha um sorriso tímido e generoso. Hoje me arrependo não ter lhe dado a atenção merecida. A foto é do início dos anos 1970. Vemos ao fundo e em frente os imensos laranjais da família Benatti. A casa anterior de barro e sapê foi incendiada por mim quando brincava com um pequeno balão:

Lembranças de um menino cantante:

O som de sua cantoria invadia minha casa, o meu quarto e meus ouvidos, era como o sol entrando no quarto escuro, incomodando meus olhos que queriam continuar fechados, sonolentos.

Raul era o nome dele e o seu cantar matinal era a confirmação de que o tempo estava bom e não chovia. Sua mãe não permitia que ele saísse de casa com tempo ameaçador. Ele não era uma criança comum. O mundo em que vivia era outro, ali a maldade do nosso mundo não tinha permissão pra fazer morada. Era um mundo só seu particular. Na cara tinha um par de olhos arredondados e atentos e na boca um sorriso constante. Parecia rir de todos nós. 

Algumas vezes o encarava, procurando respostas sobre seu modo de viver e ele sorria como se estivesse vasculhando o meu cérebro para dizer "eu tenho a chave da porta que conduz ao meu mundo e não lhe darei." O menino usava um pedaço de madeira com algumas tampas de garrafas nela pregado, fingia ter um rádio colado ao ouvido e cantava músicas de Roberto Carlos, narrava futebol e até mesmo noticiava como fosse um repórter. 

Entre as Cinco Casas e a casa de Dona Margarida, última casa da Linha, ele percorria o trecho várias vezes ao dia e sempre cantando. Dos roçados e capoeiras, os trabalhadores ouviam o cantor e gritavam pedindo para ele cantar determinada música. Estava sempre asseado, penteado e alimentado para iniciar a cantoria, que se iniciava com os primeiros e os últimos raios de sol.  Muito obrigado Raul, por ter existido e feito parte do meu viver!

Lembranças do Seu Nego e Dona Ita:

Eu os vi pela primeira vez em 1955, quando tinha 7 anos de idade. Acompanhava minha mãe até aquela tapera, conduzindo uma cabra que cruzaria com um bode pertencente ao casal. Ali se tornaria meu refúgio após praticar as minhas merdas diárias. Seu Nego e Dona Ita viviam numa casa nas margens do Rio Campinho, perto da Ponte dos 15 Metros e ali cultivavam alguns vegetais e hortaliças. Pés de café e caqui pareciam sentinelas fiéis plantados na frente da casa, além de muitas flores. Muitas!

Ele era baixo e quase gordo, meio desajeitado dentro daquelas calças largas e amarrado, pela cintura, por embiras vegetais. Ela era magra e elegante dentro dos vestidos rodados quase alcançando seus tornozelos. Falava baixo e devagar, palavra por palavra. Na cabeça o lenço inseparável. Eram apaixonados um pelo outro e ela o tratava com exagerado carinho. Ao chegar do trabalho ela o despia e o banhava, enquanto falava do seu amor. 

Sofriam pelo filho que partira muitos anos atrás dizendo que só voltaria no dia que construísse uma casa pra eles e os levaria embora. Dona Ita alimentava esperança toda vez que ouvia som de algum automóvel. Já o Seu Nego tinha perdido a esperança e confessava que talvez o filho nem estivesse  vivo. O casal era tímido e não era de fazer visitas, mas de tempo em tempo parentes apareciam e então gargalhadas e cantorias, na carona do vento, eram ouvidas de longe.

"Sete saias, sete saias, sete saias de organza.

Debaixo destas sete saias, sua mão sempre alcança.

Sete saias, sete saias, sete saias de veludo.

“Debaixo destas sete saias, tem um bicho cabeludo”

As cantorias e gargalhadas se estendiam por um longo tempo, enquanto nomes de tecidos eram lembrados, rimados e cantados. Eram dias de alegria.

Seu Nego ao voltar das compras, sempre aos sábados, vinha meio bebo e cantarolando a música que eu queria aprender, mas era impossível de entender.

"Vestido de veludo, ela requebra tudo...

Vestido de veludo, ela requebra tudo...

“Vestido de veludo, ela...”

Alguns anos se passaram até que um dia surgiu na Linha de Austin um automóvel e um caminhão com símbolos da Marinha Brasileira. Era o filho aventureiro que havia regressado para resgatar os seus pais. O jovem vestia fardamento dos Fuzileiros Navais, muito impecável dentro daquele vermelho vibrante. Era cabo da Marinha.

Na despedida Dona Ita olhou fundo nos meus olhos, esfregou sua mão no seu rosto preto e em seu cabelo carapinha. Depois esfregou sua mão em meu rosto branco e no meu cabelo louro enquanto dizia: "Ocê é mais preto que eu" Ela sempre fazia isso comigo.

Seu Nego, orgulhoso, dizia que seu filho era chofer, motorista do chefe da Marinha e que Vargem Grande seria agora sua nova morada. A última vez que os vi foi em 1960. Nessa ocasião eu tinha apenas 12 anos de idade.

Terreno pronto para o plantio aguardando somente a abençoada e divina chuva. Arrendado ao Sr. José das Moças. Batata doce, jiló, quiabo, pimentões e aipim seriam cultivados:

O lado direito da imagem mostra as terras do Sr. Chico Ruas e do lado esquerdo dos Eucaliptos, o Laranjal do Sr João Benatti, hoje o Conjunto Habitacional Campinho.

As brigas de Domício e Neco Preto na Linha na Austin:

Neco Preto era de estatura baixa, possuidor de peito e bunda empinados (muito parecido com o ator Grande Otelo). Falante e alegre. Era sorridente, cultivando sobre a boca beiçuda e vermelha um bigodinho tipo: sem vergonha. Casado e pai de casal de filhos. Morava com os sogros em casa de sapê na Linha de Austin. Trabalhador rural analfabeto, dependente do álcool.

Domício era bem mais jovem que Neco Preto. Também analfabeto trabalhador rural e alcoólatra, mas com uma triste agravante. Possuía grave enfermidade urinária. A urina escorria todo tempo por suas pernas provocando o distanciamento das pessoas. O cheiro nada agradável era sentido ao longe. Os dois eram negros.

Na ausência da cachaça, Domício, mantinha boa relação com as pessoas. Era educado, gentil e respeitador, mas embriagado se transformava, era violento e provocador. Certa ocasião eu resolvi aceitar o desafio e me atraquei com ele numa briga. Havia se apossado de minha bola de futebol e não queria devolver. Rolamos no chão, enquanto tapas eram trocados poeira e urinas eram lançadas para todos os lados. Tomei tapas, socos e banho de urina.

Naquele tempo as Cinco Casas era o ponto de encontro da localidade e era onde se dirigiam todas as pessoas principalmente nos finais de semana. Depois de uma extenuante jornada de trabalho.

Neco Preto também bebum, era o único entre todos a se sentir ofendido pelas falas do Domício e então saiam na bordoada. Pareciam dois gladiadores lutando para se manterem de pé e distribuindo tapas e chutes.

O final da história era sempre o mesmo os dois exaustos, caídos ao chão e banhados de urina e ali dormindo até o dia seguinte.

Na segunda-feira, um ao lado do outro, distribuíam enxadadas no mato inimigo e davam gostosas risadas sobre os causos ocorridos no final de semana.

Triste foi a vida do menino Domício, sem ter nunca sentido as mãos na cintura de uma dama numa única dança ou mesmo o abraço forte e fraterno do amigo.

A importância de possuir uma casa na Linha de Austin:

Era muito comum o pobre trabalhador rural não possuir casa para morar e ao aceitar casa cedida pelo sitiante, ficava submisso. As casas na verdade, eram palhoças construídas de barro batido e cobertas por sapê. Cada sítio tinha seus regulamentos e a forma de pagamento. Ao trabalhador ou residente, restava somente concordar e obedecer, pois caso fosse despedido teria que desocupar a casa rapidamente.

A única solução era construir uma casa na Linha de Austin, só que não era nada fácil. Os olheiros do Alemão denunciavam e em pouco tempo a polícia chegava e impedia essa construção, usando de violência e ameaças. Os "poderosos" sabiam que possuir uma casa ali, significava a liberdade do miserável e seria o fim da submissão imposta. 

Porém a União entre os pobres prevaleceu e casas foram construídas em mutirão, em uma única noite, a fundação, madeiramento, barro cavado, barro batido. O sapê, bastante tempo já colhido, secado e escondido. Quando o dia clareava já era um lar, havia moradores em seu interior e o primeiro café, era compartilhado por todos.

Eu participei na construção da casa do Tião Sabino:

Quando clareava o dia a notícia chegava no ouvido do Alemão e pouco depois ele e os policiais desembarcavam na nova casa, desapontados, iam embora pois não podiam desalojar mulheres e crianças. A rebeldia, resistência e união era a premiação maior para o pobre lavrador, a conquista da independência. A soberania para escolher com quem queria trabalhar. Finalmente no início dos anos 60 conseguimos possuir um lar na Linha de Austin.

Na imagem acima vemos moradores da Linha de Austin na Avenida Brasil num passeio de domingo. Ao fundo a sede da Fazenda do Sr. Cabral e a Linha de Austin.

Moacir Clemente e Manoel Firmino:

Esses dois usaram enxadas e as mãos para limpar e nivelar o terreno do futuro campo de futebol do "Baliza Azul". Nos anos 1970. Sobre o Manoel Firmino tenho um caso interessante para contar. Mas um outro dia eu conto.

Bisbilhotando meu desorganizado arquivo me deparo com esse pedaço de um antigo mapa, provavelmente dos anos 1950, já que constam residências muito antigas, como a casa de meus pais e avós na Linha de Austin, final da Estrada do Tingui:

Observem que no mapa a Estrada do Tingui dá continuidade na Linha de Austin. Estrada do Tingui é o correto e não Linha de Austin.

A menina da foto acima é minha neta e o local é a Fazenda Nova Índia nessa imagem de 2003, nos arredores do conjunto habitacional Manguariba, onde ruínas de um antigo engenho insistem em se manter de pé. A menina está no interior de um tacho de ferro usado por escravos na lida do engenho. Esse tipo de tacho era comum no sítio do Sr. Antônio Boia, hoje fábrica de cervejas, no lado esquerdo da Av. Brasil, logo após a ponte em direção ao centro da cidade. (antigamente toda margem da Linha de Austin, no lado esquerdo pertencia ao sítio do Sr. Boia).

Nesse sítio havia inúmeras e imensas peças de ferro que denunciavam ter havido engenho no local. Tachos de ferro como esse da foto, eram  usados por escravos na fabricação do açúcar, melado e aguardente, já no sítio do Sr. Boia a sua serventia era usar como comedouros de ração para o gado além de serem usados como panelas giratórias em nossas divertidas brincadeiras de criança. 

O sítio do Sr. Antônio Boia se chamava "Sítio do Ypê", por causa dos inúmeros pés de Ypê verde que havia nele.

Na imagem abaixo pedra de antigo moinho que existiu às margens da Linha de Austin. Ficava em terras da Fazenda do Cabral (lado direito da Linha de Austin, no sentido Avenida Brasil entre o rio e a rodovia). Atualmente essa pedra se encontra no bairro de Santa Margarida. 

Na segunda imagem, o local onde ficava o antigo moinho.

Abaixo vemos a Estrada do Campinho numa foto de Augusto Malta:

Fragmento de foto feita na primeira ponte da Av. Brasil, a segunda ponte foi construída somente na duplicação da Avenida, entre os anos de 1963 a 1965. Observem o filete dágua que escorre preguiçosamente e a Ponte de 15 Metros branca e majestosa enfeitando o Rio Campinho. Na época da foto ainda não havia a Avenida Brasil. Mas essa Ponte já existia. Já a Avenida Brasil nem sempre teve esse nome. Antes ela se chamava Estrada das Bandeiras.

A foto abaixo foi feita no início dos anos 1960 revelando dois moradores da Linha de Austin. O menino de cor preta pertencia à família Firmino, sua casa ficava em meio ao laranjal do Sr. João Benatti. O jovem de bicicleta residia com sua tia, conhecida como Morena Godói, na Linha de Austin. Adão era seu nome.

Os dois tiveram vidas curtas. Tião Firminio foi morto ao praticar atos ilícitos poucos anos após essa foto lá para o lado da Cachamorra, já o Adão Godói, o jovem na bicicleta, morreu por afogamento na praia do Grumari, onde foi levado para conhecer o mar, acompanhado pelo amigo Vadim, morador de Cosmos, que teve o mesmo fim trágico. Na praia ficaram somente as duas lambretas, roupas, garrafas com água e os sanduíches. Os corpos dos dois foram encontrados dias depois. 

Adão era trabalhador braçal desde criança. No roçado se tornou responsável e forte. Jovem muito inteligente acabou com os atravessadores que compravam os frutos dos agricultores para revender por preços altíssimos. Enquanto aos agricultores eles pagavam miséria. Foi quando ele resolveu vender seus produtos diretamente aos barraqueiros e quitandeiros conseguindo multiplicar seus ganhos e conquistando o respeito entre todas as pessoas do lugar.

Acima foto da única passagem subterrânea ainda existente na Linha de Austin. Quando criança me servia como "caverna” ou "passagem secreta" em divertidas brincadeiras, além de ser utilizada como moradia temporária do indivíduo conhecido por "Caboclinho". Alguns afirmavam ser o estranho homem, que vivia só e isolado em uma cabana de sapê na mata da Fazenda da família Cabral, um índio perdido. Perguntei-lhe sobre sua origem algumas vezes e ele ria divertido e debochado, iniciando cantoria de língua desconhecida. Descalço, peito nu e cabelos pelos ombros eram visto atravessando a Linha de Austin de um lado para o outro apressado e conversando com os espíritos de seus antepassados segundo ele. Muitas vezes me serviu o seu almoço e eu nunca sabia o que estava comendo. Ele comia tudo que respirava.

A foto acima mostra o Senhor Dionísio que cultivava seus frutos lá para os lados do "Cavalo de Pau" (Palmares), sua produção era comercializada no centro de Campo Grande onde hoje fica o Mercado São Brás. Segunda quarta e sexta-feira eram os dias em que ele e seus filhos faziam a entrega de suas mercadorias, mas antes percorriam a Linha de Austin para comprar ovos caseiros em algumas casas. Minha mãe juntava e vendia sua produção semanal para essa família. 

Essa foto foi feita para uma reportagem de determinado jornal no início dos anos 60 na Estrada do Campinho em frente à Estrada Carvalho Ramos, antiga Estrada da Bandeira. Essa foto me foi doada em 2013.

Desses cadernos abaixo, com mais de 55 anos de idade é que revelo as minhas lembranças da Linha de Austin:

Na foto abaixo as plantações cresciam vigorosas e sadias e então a chuva inesperada caia copiosamente durante dois e três dias enchendo o Rio Campinho até transbordar e inundar toda baixada, afogando a área cultivada até a morte.


Sem idade para entender o desespero dos lavradores, mesmo o meu pai. Eu Leu Lima me divertia no excesso das águas. Da ponte os rapazes se arriscavam em mergulhos nas águas traiçoeiras e velozes do rio, enquanto a molecada nadava abraçado às bananeiras. Foto provável final dos anos 1950.

Já a foto abaixo foi tirada na esquina da Estrada do Campinho e a Linha de Austin, no local conhecido como Cinco Casas. 

Na imagem vemos Natim Godói com gaiola, Quiquim, Sona e Sr Daniel em Bicicletas (Quiquim e Sona eram filhos do Sr. Daniel). Em pé ao lado direito encontra-se o menino conhecido como Didim, Leopoldo, filho da Dona Marieta e irmão de Miteti, João e Zezinho da Vacaria. Todos já falecidos. Ao fundo aparece uma das Cinco Casas, a Estação Ferroviária Heitor Lira. Esse prédio teve serventia também como Capela de Nossa Senhora do Monte Serrat durante muitos anos. Ao lado do Didim aparece a tendinha do Daim Godói. Ao lado esquerdo, não mostrado, ficava a tendinha do Manoel Quintal.                                                                   

Onde estão as casas do Conjunto Campinho?

Na foto acima vemos a Linha de Austin no final dos anos 1960, provavelmente no atual nº 4248 da Estrada do Tingüi. Na foto abaixo vemos o Leu Lima com 16 anos, junto com o seu primoTotó. Na foto seguinte vemos o Sr. Carlos Rocha (Autor da foto).


Abaixo a Linha de Austin em 1959. Foto feita onde hoje é o atual número 3645. Aproximadamente, na Estrada do Tingui.


Assim era antes da construção do conjunto. Era o sertão onde o Saci, Lobisomem, Mula sem Cabeça, Boi Tatá, benzedeiros, parteiras, tamanqueiros, ferreiros, vaqueiros e trabalhadores rurais viviam.

A imagem abaixo se trata de uma raridade. Um mapa de uma área entre Cosmos e Campo Grande, de 1969. No mapa aparece a famosa Linha de Austin, a Estrada do Campinho e o Rio Campinho. Na época a região era dominada por laranjais e sítios, característica típica dos bairros da Zona Oeste como mostra a imagem.

O mapa pertence a Léu Lima. Foi desenhado por ele, que é um morador antigo de Cosmos e profundo conhecedor das terras do bairro, além de Santa Margarida, Inhoaíba e Palmares.

Na foto abaixo antigos residentes da Linha Austin, Zé Augusto e familiares, se despedem do antigo sertão agrícola de suas infâncias. Observam o futuro sendo erguido por tijolos e cimento. Início dos anos 1970.

Na foto seguinte tirada na década de 1960. Vemos o Sr. Jorge da Estrada. Em sua casa que ficava dentro das terras do Sítio do Chico Ruas. Localizado na Estrada do Tinguí. Nessa casa a entrada era pela porta da cozinha. Era por onde se entrava e saia da casa. Era na cozinha era onde tudo acontecia, as conversas, o café cheiroso, o almoço. Nela ninguém usava a porta da sala. 

Era assim um dia de domingo nas Cinco Casas. Estrada do Campinho com Linha de Austin. No início dos anos 1960.

A imagem abaixo foi feita no início dos anos 60 do século passado revelando dois moradores da Linha de Austin. O menino de cor preta pertencia à família Firmino, sua casa ficava em meio ao laranjal do Sr João Benatti. O jovem de bicicleta residia com sua tia, conhecida como Morena Godói, na Linha de Austin. Adão era o seu nome.

Os dois tiveram vidas curtas. Tião Firmino foi morto ao praticar atos ilícitos poucos anos após essa foto lá para o lado da Cachamorra já o Adão Godói, o jovem na bicicleta, morreu por afogamento na praia do Grumari onde foi levado para conhecer o mar estava acompanhado do amigo, Vadim, morador de Cosmos, que também teve o mesmo fim trágico. Na praia as duas lambretas, roupas, garrafas com água e os sanduíches foram encontrados. Os corpos somente dias depois. Afogamento múltiplo. 

Adão era trabalhador braçal desde criança, no roçado se tornou responsável é forte. Ainda muito jovem e inteligente eliminou os atravessadores que compravam os frutos dos agricultores para revender por preços altíssimos enquanto aos agricultores se pagava miséria foi quando ele resolveu vender seus produtos diretamente aos barraqueiros e quitandeiros, assim multiplicou seus ganhos e conquistou o respeito entre todos que o rodeavam.

Acima em primeiro plano vemos minha mãe e meu irmão caçula, falecidos, ao lado, com mãos na cintura, o menino de nome Adão, ainda hoje residente na Linha de Austin. Homem honrado e trabalhador, sobrevivente de vida difícil é sofrida. Tinha sorriso tímido e generoso. Hoje me arrependo de não lhe ter dado a atenção merecida. Foto provável do início dos anos 1970. Essa casa na Linha de Austin tinha ao fundo e em frente os imensos laranjais da família Benatti. Essa casa foi à segunda morada de minha família na Linha de Austin, a anterior, de barro e sapê, foi incendiada por mim quando brincava com um pequeno balão.

Abaixo foto de um homem conhecido por Sr. Totó. Pai de sete filhos, três meninas e quatro meninos. Era magro, alto e possuidor de uma voz poderosa, ao falar. Num trecho da Linha de Austin com Estrada do Tinguí, atual número 3645. Ano de 1969.


O silêncio era extraordinário naquele trecho da Linha de Austin, às vezes se ouvia vozes e tinha a sensação de que as pessoas estavam a 15 metros de distância, mas tempo depois, se descobria que estavam para mais de 1000 metros.


Ao entardecer eles se reuniam próximo da casa do Sr. Chico e ali, sem perceber, se deixavam envolver pelo espírito da traquinagem.

Quem topa fazer um torneio pra ver quem chupa mais laranja?

Torneios de laranjas eram uma constante entre aquela molecada!

Embrenhados no laranjal discutiam qual tipo de laranja. Lima, pêra, seleta ou Bahia. Se o corte seria tampinha, gomos, ao meio, galinha choca. Se o bagaço teria que ser engolido.

Eles vadiavam pelos laranjais como acreditassem que nenhum momento deveria passar sem um prazer e saboreavam até os atos mais simples como atravessar uma pinguela, abrir uma porteira ou uma boa e divertida travessura.

Distraídos estavam na disputa que não reparavam a presença do dono do laranjal.

Surpresa geral!

Naquela época as pessoas se movimentavam devagar. Faziam tudo com calma, não se afobavam por coisa nenhuma. Naquela época o dia só tinha 24 horas, eram longos. Não havia pressa.

O sitiante, com sobrancelhas contraídas e expressão séria - Ouçam o que estou dizendo: Vocês podem pegar as laranjas que quiserem, é importante enterrar ou cobrir as cascas e os bagaços, isso vai evitar as moscas e insetos nocivos ao plantio. Jogue mato ou as enterre. Vocês me prometem?

Os moleques, em silêncio e compenetrados na fala do gentil homem procuravam algum ponto situado na expressão ou fala do senhor para depois fazer gozação.

- Sim senhor.

Foi só o homem sair de suas vistas que começavam as brincadeiras.

- Viu a cara de fuinha dele quando falou... Imitações.

- Pavão deve tá todo borrado!

- Não podemos deixar as cascas e nem os bagaços em cima da terra. Posso contar com vocês? - Hildo Beijola imitando o proprietário do laranjal.

Tempos depois foi observado inúmeras laranjas descascadas em seus galhos, dando a impressão de trapezistas prestes a realizar o salto mortal ou lembrava imensos parafusos, balançando pra lá e pra cá ao sabor do vento. Parecia um balé.

Fonte: Textos do Caderno de Leu Lima.

Revisão e digitação feita pelo autor deste blog.

4 comentários:

Anônimo disse...

Muito bonita a história, saudades de um tempo que não volta mais!

Adinalzir disse...

Caro Anônimo!
Muito bom saber que você gostou.
Grato pela visita e comentário!

Anônimo disse...

muito omocionada com as lembranças do lugar onde passei minha infância, junto com meus irmãos e pais
ass: Tânia Vieira da Silva

Adinalzir disse...

Minha querida Tânia Vieira da Silva
Muito bom saber que você gostou.
Gratidão pela visita!