sexta-feira, setembro 01, 2023

De Estação Gambá a Piedade


“Muitas famílias vão morar na Tijuca, Méier, outros bairros, reclamando que Piedade não tem comércio e diversão. Tempos depois vem o arrependimento: ‘Lá ninguém me conhece, só compro pão pagando antes no caixa’.” O relato de Sílvio Cardoso, retirado do livro Um Bairro Chamado Piedade – Memória de um Subúrbio Carioca, editado pela Universidade Gama Filho, remete a lembranças de um local pouco agitado – exceto no carnaval! – e mais “intimista”.

Residencial e de comércio reduzido, Piedade é um bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro com aproximadamente 43 mil habitantes. Pertencente à XIII Região Administrativa (Méier) da cidade, faz divisa com Quintino Bocaiúva, Cavalcante, Pilares, Tomás Coelho, Abolição, Encantado, Água Santa e Freguesia. Nas suas encostas situam-se as comunidades do Jardim Piedade (Caixa D’ Água), Morro do Dezoito, Morro dos Marianos e Engenheiro Alfredo Gonçalves.

Origem rural

As terras que hoje formam o bairro situavam-se entre as freguesias de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá e São Tiago de Inhaúma, e consistiam em uma sesmaria doada a Apolinário Pereira Cabral, em 1779. Naquele tempo, a maioria das áreas onde atualmente se localizam os subúrbios do Rio era ocupada por fazendas e engenhos de açúcar e de aguardente, subordinados às velhas paróquias. Nelas havia um intenso comércio desses e de outros produtos, cujo escoamento se dava através dos rios Pavuna e Meriti. Era um lugar muito procurado pelas classes abastadas e viajantes europeus, atraídos pelo seu clima saudável.

Nas primeiras décadas do século XVIII, a região da Freguesia de São Tiago de Inhaúma já apresentava aspectos de prosperidade, graças à administração dos padres jesuítas, seus proprietários. No entanto, na segunda metade do mesmo século, o marquês de Pombal, secretário de Estado português, empreendeu uma reforma administrativa e religiosa na colônia, na qual, entre outras medidas, determinava a expulsão dos jesuítas. O objetivo era acabar com conflitos entre colonos e jesuítas em torno da questão da exploração da mão de obra indígena. A falta de escravos negros fazia com que muitos colonos quisessem prender e escravizar populações indígenas. Os jesuítas, por sua vez, se opunham a tal prática, muitas vezes apoiando os índios contra os colonos. Vendo os prejuízos trazidos com essa situação, Pombal expulsou os jesuítas e instituiu o fim da escravidão indígena.

Com isso, grandes latifúndios foram confiscados e, posteriormente, divididos para serem arrematados. O assentamento dos trilhos da Estrada de Ferro Dom Pedro II (depois Central do Brasil) também provocou a divisão das principais propriedades na região.

Povoamento e progresso

A ocupação começou ao longo da Estrada Real de Santa Cruz, depois chamada Avenida Suburbana e, atualmente, Avenida Dom Hélder Câmara. Nessa área, desenvolveram-se grandes chácaras pertencentes às famílias Curvelo Cavalcanti e Antônio Botafogo. Mais tarde, essas chácaras foram subdivididas, dando origem às ruas do futuro bairro.

No início do século XX, a região do bairro de Piedade tinha uma característica essencialmente rural, com pequenos sítios e lotes de terra, mas já apresentava um significativo progresso. Prédios foram construídos e a fisionomia urbana começou a substituir as características da antiga sociedade agrária escravista.

Buscando interligar regiões fora do centro urbano da cidade, o então prefeito Pereira Passos criou estradas de ligação entre os bairros de Piedade e Quintino – conhecido como Cupertino –, assim como fez entre Engenho Novo e Méier e entre Méier e Engenho de Dentro. A presença da estação de trem em Piedade reforçou a movimentação de trabalhadores em direção ao subúrbio.

A sociedade do bairro, formada originalmente por colonos portugueses, incorporou ao longo de sua história migrantes de várias regiões do país. Assim, o quadro de moradores abrangia desde grandes proprietários de terras, comerciantes, industriais, funcionários públicos e operários até grupos menos beneficiados economicamente, que viviam de pequenos serviços ou biscates. As residências alternavam-se entre antigos casarões, semelhantes às quintas lusitanas, as modestas casas da maioria da população e os casebres insalubres, erguidos nos morros que circundavam o bairro.

Em 1932 foi criada a Circunscrição da Piedade e, na década de 1960, surgiram as Administrações Regionais. A denominação, a delimitação e a codificação do bairro foram estabelecidas pelo Decreto nº 3.158, de 23 de julho de 1981, com alterações do Decreto nº 5.280, de 23 de agosto de 1985.

Controvérsias na origem do nome

Voltando no tempo, em 1873, foi implantada a Estrada de Ferro Dom Pedro II. Durante uma viagem, na época da expansão ferroviária em direção à zona norte da cidade do Rio, o imperador se deparou com uma região infestada de gambás e a batizou de Parada ou Estação “Gambá”. Há quem atribua a motivação do nome aos muitos embriagados (apelidados gambás), que perambulavam pelos botecos do local.

De qualquer forma, pelo sentido pejorativo incorporado, Estação Gambá causava descontentamento entre os moradores, que queriam um outro nome para o bairro. Sobre a mudança para Piedade, alguns dizem que foi em homenagem à dona Maria de Piedade, mãe de Elisário Antônio dos Santos, o barão de Angra, que administrava a estrada de ferro na época da inauguração. Outros afirmam que, naquela época, havia o costume de dar às localidades o nome do santo padroeiro. Assim, Piedade teria sido em homenagem a Nossa Senhora da Piedade, protetora da região.



A versão mais conhecida, porém, seria a de que os moradores se organizaram e enviaram uma carta ao diretor da Estrada de Ferro Central do Brasil, pedindo a troca do nome. A carta dizia: “Por piedade, doutor, troque o nome da nossa estaçãozinha...”. O pedido teria surtido efeito: “Minha senhora, será feito. E o nome do bairro será Piedade”, daí originando-se o nome da atual estação e do próprio bairro.

Igreja Nossa Senhora da Piedade

No início do século XX, a comunidade em formação já ansiava por uma igreja que suprisse suas necessidades espirituais e, por isso, foi iniciada a construção da Capela Pública de Piedade, localizada na Rua da Capela. Nessa ocasião, a Congregação dos Padres Salvatorianos procurava uma região para se estabelecer e exercer sua vocação evangelizadora, e lá adquiriu um terreno baldio na atual Rua Clarimundo de Melo.

A construção da igreja foi possível com a aliança dos salvatorianos e da comunidade local, essencial para a arrecadação de fundos, e pelo envolvimento integral com as obras. O templo foi inaugurado já na condição de Igreja Matriz de Nossa Senhora de Piedade (hoje paróquia), em 26 de outubro de 1915.

Os padres salvatorianos estiveram envolvidos na criação da Igreja do Divino Salvador, onde passaram a concentrar suas atividades. Eles também foram importantes pela ajuda dada às Irmãs da Congregação Missionária Servas do Espírito Santo, que, em 14 de janeiro de 1914, se estabeleceram na Igreja do Divino Salvador e deram início ao Colégio Nossa Senhora da Piedade, hoje localizado no Encantado.

Primeira universidade do subúrbio

Piedade e Encantado foram os primeiros bairros do subúrbio carioca a ter energia elétrica, em 1905. No decorrer dos anos, o progresso da região se deu principalmente pela existência de uma fábrica de refino de açúcar (desde 1927) e pela criação da primeira universidade do subúrbio carioca, a Universidade Gama Filho (antigo Colégio Piedade), fundada em 1939 pelo ministro Luiz Gama Filho.

O embrião da universidade foi o Gymnásio Piedade, escola inaugurada em março de 1924, cujo principal fundador chamava-se Manoel Lopes Vilar. Quinze anos depois, a escola foi vendida a Luiz Gama Filho, que, desde aquela época, já manifestava o desejo de criar uma universidade no subúrbio. Em 1943, o Gymnásio passou a ser chamado Colégio Piedade, depois Colégio Gama Filho, no ano de 2000.

Em janeiro de 1951, nascia a Faculdade de Ciências Jurídicas do Rio de Janeiro, por iniciativa de Gama Filho, e Piedade tornou-se o primeiro bairro do subúrbio carioca a oferecer ensino superior à comunidade. A primeira turma, com mais de cem alunos, prenunciava o surgimento de outros cursos. Para atender às necessidades do ensino e também prestar serviços à população, foi criado o Hospital Universitário Gama Filho e a Unidade de Pacientes Externos Paulina Gama, integrada à Escola Médica, e que daria origem ao Hospital da Piedade.

Futebol, tragédia e saudade

O tradicional River Futebol Clube também era referência no bairro. Foi o primeiro clube em que o jogador de futebol Zico jogou e ganhou visibilidade, naquela época ainda no futebol de salão. “Descoberto” depois de uma bela atuação, em que fez dez dos catorze gols que deram a vitória ao time da Piedade, Zico transferiu-se para o Flamengo, onde passou a atuar no futebol de campo. Hoje, O River está mais voltado para a programação social.

Um fato também marcante na história do bairro foi o assassinato de Euclides da Cunha (autor de Os Sertões) em 1909, por Dilermando de Assis, um cadete do Exército que, desde 1905, mantinha um romance proibido com Anna, mulher do escritor. Ao descobrir a traição, ele foi até a casa do suposto amante, na Estrada Real, 214, disposto a “matar ou morrer”. Depois de uma troca de tiros, Euclides foi atingido e morreu. O episódio ficou conhecido como “Tragédia da Piedade” e ganhou as manchetes dos jornais da época.

Mas Piedade seria lembrada mesmo pelo animado carnaval de rua nos bondes, onde o carioca, principalmente que vivia no subúrbio, dedicava-se à folia. Às seis horas, o bonde saía, todo enfeitado, do ponto final e corria a então Avenida Suburbana. Jovens viajavam nos estribos, segurando os balaústres. E, a cada parada, os foliões desciam para sambar. Dizem os mais saudosistas que, com o fim do bonde, em 1965, o carnaval em Piedade jamais voltou a ser o que era...

Por Fernanda Fernandes. 17 Fevereiro 2014.

Fonte: https://www.multirio.rj.gov.br/index.php

5 comentários:

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Às vezes fico pensando que os subúrbios da Zona Norte tinham tudo para se tornar locais de excelência dentro de uma expansão urbana planejada da então capital do país. Com um transporte de massas que era o trem e muitas áreas para construir, esses bairros da cidade deveriam ter sido contemplados com projetos habitacionais, de arruamento e infraestrutura enquanto a Zona Sul e o litoral da Zona Oeste poderiam ter recebido uma ocupação mais restrita, transformando-se em parques ou áreas de proteção ambiental. Há 130 anos, aio que parece, essa deveria ter sido a ideia.

RESENHA DIGITAL disse...

Sobeo o tema de histórico dos chamados suburbios cariocas, o Instituto Histórico e Geografico Baixada de Irajá - IHGBI, acaba lançar o livro e-book "Estação de Irajá - Arraial da Encruzilhada 1600-2000" de Ronaldo Luiz Martins, que ainda não possui edição gráfica. O objetivo autor, cedendo nesta situação seus direitos autorais, e a sua distribuição gratuita a estudantes de todos os níveis, professores, historiadores, jornalistas e pessoas interessadas, de forma a provover conhecimento e pertencimento a população, principalmente a da Baixada de Irájá. Não havendo como neste comentario inserir anexo, a todos que queiram receber esse e-book, solicitamos enviar e-mail a ihgbiirajá que sera ele pelo IHGBI enviado. Poderá ser feita tambem ao autor pelo telefone (21) 3253-5822. Ronaldo Luiz Martins, 81 anos, analista de sistema e memorista historiador autodidata, e um dos componentes fundadores do IHGBI atravez do qual editou os Livros Mercadão de Madureira Caminhos de Comércio, Portão da Casa Rosa e varios artigos sobre o histórico da Baixada de Irajá. Visite este blogger que assina Neste

RESENHA DIGITAL disse...

Corrigindo: caixa postal de solicitação: ihgbiraja@gmail.com

Adinalzir disse...

Prezado Rodrigo Phanardzis
Concordo plenamente com suas idéias e colocações. Fico muito grato pela visita.
Um abraço e um excelente dia!

Adinalzir disse...

Prezado RESENHA DIGITAL
Fico muito honrado pela visita e pelo oferecimento do e-book digital.
Já fiz a solicitação por e-mail e ficarei no aguardo do envio.
Um abraço e um excelente dia!