Ícone da ópera e do teatro no século XIX, e musa de Machado de Assis, a cantora lírica italiana entrou para a história como símbolo da Itália no Brasil e morreu no ostracismo no bairro, em imóvel doado por Dom Pedro II.
Rio - Em 17 de janeiro de 1844, Augusta Candiani, cantora lírica italiana, estreava no Rio de Janeiro como a prima-dona da Companhia Italiana de Ópera, no Teatro São Pedro de Alcântara — onde hoje fica o Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes — interpretando Norma na primeira montagem da ópera no Brasil. O entusiasmo do público com a artista foi tão grande que ela não voltou para Milão, construindo no Rio uma carreira de sucesso permeada por momentos de glória nos palcos dos teatros da Corte (ela chegou a fazer parte do círculo imperial) e sendo musa inspiradora de grandes escritores da época, como Machado de Assis e Martins Pena.
Em 1846, Candiani se separa do marido italiano e, por conta da polêmica do divórcio, acaba desaparecendo dos palcos cariocas e morrendo no ostracismo, em 1890. Mas o mesmo não acontece na memória deste grupo de moradores de Santa Cruz, na Zona Oeste, que deseja perpetuar a soprano que seduziu os ouvidos sedentos por boa ópera nos tempos do Segundo Reinado: mais de um século depois, ele idealiza a 'Casa-Museu e Centro de Resistência da Mulher Augusta Candiani', no imóvel doado por Dom Pedro II para a cantora, onde morreu sozinha, aos 69 anos, cega e pobre.
"Faço questão de criar como centro de resistência, pois ela foi uma mulher resistente. Ela veio para o Brasil em 1843, casada com um farmacêutico italiano, ficou grávida aqui, quando estava fazendo uma fama estrondosa, mas ela se separou de Gioacchino quando ele passou a agredi-la fisicamente e a roubar o dinheiro dela. Então, ela se aproximou de José d’Almeida Cabral, seu segundo companheiro, compositor de modinhas. O preconceito social era tão grande que os teatros não queriam mais recebê-la. O jeito foi, com José, percorrer outras cidades para se apresentar, como Macaé e Cantagalo. Nesta época, ela já cantava um pouco de modinha e música sacra, mas o principal ainda era ópera", contou Sinvaldo do Nascimento Souza, professor de história e museólogo de 73 anos, que teve a ideia da homenagem.
A casa, composta por corredor grande, sala, três quartos, um banheiro, uma cozinha e uma copa, é, hoje, propriedade particular da Família Leira, e está à venda. O inventário consta 35 herdeiros, nenhum deles com ligação parental com Augusta. Sinvaldo e outros pesquisadores da vida da cantora ainda não encontraram documentos da época que esclareçam como o imóvel chegou à atual família detentora.
A ideia é que a Prefeitura do Rio compre a propriedade, que fica localizada no número 215 da Rua Senador Camará, antiga Rua do Comércio, a principal na época da monarquia. A casa está na lista dos bens preservados pelo decreto nº 12.524/93, que cria a Área de Proteção do Ambiente Cultural (Apac) do bairro de Santa Cruz.
Para chamar a atenção do poder público, o grupo, liderado por Sinvaldo, vem se reunindo e promovendo encontros semanais em frente ao imóvel. Eles desejam atrair os olhares da prefeitura, do Consulado Italiano, do Ministério da Cultura e do Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan), para que a casa seja restaurada e revitalizada com a criação do centro.
Atualmente, aderem e apoiam a campanha a OAB-Mulher, a OAB-Escola, a Associação dos Amigos da Ponte dos Jesuítas, o Ecomuseu de Sepetiba, o Instituto de Pesquisa e Preservação Material e Imaterial do Matadouro Público de Santa Cruz (Imasc) e o Elenco Teatral Amantes da Arte (ETAA), além de pesquisadores, guias de turismo e historiadores, como Andrea Carvalho Stark, a principal biógrafa da Augusta Candiani, e Luiza Sawaya, da Universidade de Lisboa, autora do livro "José d’Almeida Cabral o último modinheiro do 2º Império do Brasil".
A proposta feita à prefeitura envolve também a empresa Ternium, uma companhia siderúrgica instalada em Santa Cruz, a Gerdau Brasil, os Banco do Brasil, Banco Itaú, Banco Santander ou outras empresas e instituições financeiras.
Enquanto a entrada da Ternium no projeto seria uma forma de a empresa compensar a população do bairro por fazer uso dos recursos hídricos e ocupar vasta área geográfica na Baía de Sepetiba, a campanha sugere a atuação da Gerdau Brasil, porque a empresa comprou a casa onde havia residido o médico e senador da República Júlio Cesário de Melo, também em Santa Cruz, e a transformou, em 2009, na Casa SerCidadão, com formação profissional de jovens pobres da periferia do bairro, além de atividades culturais. Desta forma, o grupo tem esperanças de a Gerdau se interessar pela iniciativa.
No próximo dia 17, das 10 às 12 horas, o grupo realizará um encontro em frente ao imóvel histórico, para um abraço simbólico e conversas sobre os progressos da campanha. Para a ocasião, eles pedem aos proprietários da casa que permitam o acesso ao interior e autorizem a colocar uma faixa ou placa com a frase 'Futura Casa-museu e Centro de Resistência da Mulher Augusta Candiani'.
A Secretaria Municipal de Cultura do Rio informou que recebeu a proposta, que ainda está em análise.
Caso seja contemplada pela prefeitura, a casa-museu e centro de referência será mais um equipamento cultural para o Bairro de Santa Cruz que, há um ano, ganhou a condição de Bairro Imperial, por apresentar diversos exemplares arquitetônicos considerados patrimônios, testemunhos valiosos da época do Império. Trata-se de uma política para valorizar o turismo e a história do lugar.
Bairro Imperial
Alguns legados imperiais de Santa Cruz são a antiga sede da Família Imperial (atual Batalhão de Engenharia Villagran Cabrita), antigo Mole Imperial (localizado em território da Força Aérea Brasileira e hoje uma das poucas áreas da Baía de Sepetiba com água cristalina), Complexo Arquitetônico Escola Mixta Dom João (onde atualmente fica o fórum do bairro. O complexo foi fundado por Dom Pedro II em 1889, para filhos libertos de escravos), as ruínas da casa do último Vice-Rei do Brasil e do matadouro imperial, o Palacete Princesa Isabel e antigas estações de trem do Matruco e do Matadouro.
Com a sanção da lei, que reconhece a importância histórica e cultural do bairro, a divulgação de eventos na área pode passar a usar a identificação Imperial, colocando o bairro no mapa turístico da cidade, além de serem realizadas ações para preservar e divulgar a história do local.
Quem foi Augusta Candiani
Nascida em Milão, na Itália, em 1820, Carlotta Augusta Angeolina Candiani chegou ao Brasil em dezembro de 1843, aos 23 anos, com o marido farmacêutico Gioacchino Candiani Figlio, sem qualquer contrato ou promessa para cantar, fazendo parte de um grupo de oito cantores líricos italianos que percorriam o Novo Mundo à procura de trabalho. A cantora nunca mais voltou para a Itália, sendo desconhecida em seu país de origem, embora fosse um símbolo italiano no Brasil.
Ao estrear no Teatro São Pedro de Alcântara, na primeira montagem da ópera Norma no Brasil, de Vicenzo Bellini (1801-1835), em 17 de janeiro de 1844, Augusta fez muito sucesso e a interpretação foi comentada por toda a cidade, fazendo com que a sua segunda representação, realizada poucos dias mais tarde, levasse uma multidão ao teatro. Naquela noite, aconteceu uma espécie de serenata com as músicas de Bellini, segundo o historiador Attila de Andrade, escritor do livro 'A glória de Augusta Candiani'.
Como muitas pessoas não conseguiram entrar no teatro, aguardaram do lado de fora e, após o espetáculo, desatrelaram os cavalos de sua carruagem e a puxaram pelas ruas cidade, pedindo à soprano para cantar algumas árias da ópera.
Com o sucesso de Augusta, a ópera italiana assumiu um lugar de importância no cenário artístico da Corte, inspirando, inclusive, músicos brasileiros a começar o movimento da Ópera Nacional, de acordo com Andrea Carvalho Stark, historiadora e biógrafa de Augusta Candiani.
Em março de 1844, Augusta deu à luz a sua primeira filha, Teresa Cristina Maria Candiani Figlio, cujos padrinhos eram a Imperatriz Teresa Cristina e o Imperador Dom Pedro II, reflexo da importância de Augusta na época.
"A Teresa Cristina nasceu em Nápoles e a Candiani em Milão. Então, por este fato em comum, as duas se aproximaram aqui no Rio, tornaram-se amigas", explicou Sinvaldo.
Após a separação de Gioacchino, Augusta passou a viver com o compositor de modinhas José de Almeida Cabral, o que foi um escândalo para época. Gioacchino chegou a publicar em jornais várias cartas expondo, publicamente, os conflitos com a ex-mulher. Ela perdeu todos os bens e a guarda da filha, além da importância na corte, tendo que buscar por outros palcos no interior do estado do Rio, como Macaé e Cantagalo, e outros estados tais como São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco. Os espetáculos de Candiani no Rio duraram até provavelmente 1859, segundo o pesquisador Wanderley Pinho.
Na época, Candiani já estava cantando modinhas, "transpondo as barreiras entre o erudito em língua italiana e o popular em língua portuguesa", de acordo com Andrea Stark.
Sem ter portas de trabalho abertas no Rio, Candiani passou a atuar na Companhia Dramática Cabral, de seu segundo marido, como atriz dramática por várias cidades brasileiras, ainda de acordo com os estudos de Stark. Assim, levava o teatro e a música da Corte para outros recantos do país. Ela se separou de Cabral em 1870 e se mudou para o Rio Grande do Sul, onde trabalhou como professora de canto, se apresentou para soldados da Guerra do Paraguai e se casou com o terceiro marido, Bartholomeu de Magalhães.
Em 1877, o célebre escritor Machado de Assis escreveu sobre a artista em uma crônica: "A Candiani não cantava, punha o céu na boca, e a boca no mundo. Quando ela suspirava a Norma era de pôr a gente fora de si. O público fluminense, que morre por melodia como macaco por banana, estava então nas suas auroras líricas. Ouvia a Candiani e perdia a noção da realidade. Qualquer badameco era um Píndaro".
Com Bartholomeu, Augusta volta para o Rio de Janeiro, com o seu nome já desaparecido de jornais e fazendo participações em espetáculos de operetas e cenas de mágica. Sem ter onde morar, por intermédio da imperatriz Teresa Cristina, conseguiu de Dom Pedro II a casa em Santa Cruz e o direito a uma pensão, ambos perdidos com a Proclamação da República, três meses antes de sua morte, por câncer, em fevereiro de 1890. Ela foi sepultada no Cemitério de Santa Cruz.
Os jornais da época, segundo Sinvaldo, noticiaram que ela morreu sozinha, mas existe um recorte de jornal que mostra que Bartholomeu mandou rezar uma missa de 30 dias na Capela do Curato de Santa Cruz, trazendo dúvidas se Augusta morreu mesmo solitária ou na companhia de Bartholomeu.
"Candiani foi uma mulher corajosa, resistente e combativa, que soube enfrentar e superar todo tipo de discriminação e violência de gênero, como machismo, injúria, violência doméstica e até mesmo discriminação no trabalho", disse Sinvaldo. "Ela teve uma carreira de glória e também de sofrimentos, fruto dos preconceitos da época", completou.
Para coroar o trabalho em homenagem às mulheres fortes de Santa Cruz, o grupo está planejando um livro com as personagens. "Estamos trabalhando em um dicionário bibliográfico descritivo e ilustrativo das mulheres de Santa Cruz que foram resistência. Já estamos colhendo dados sobre essas pessoas que passaram por Santa Cruz, como a própria Teresa Cristina, a escritora britânica Maria Graham, que esteve em Santa Cruz no dia 23 de agosto de 1823 e faz uma descrição bastante simpática e detalhada da Fazenda Imperial, Dona Leopoldina e a Princesa Isabel, mas não somente elas. Queremos pegar mulheres que ainda estão aqui e não são famosas. Faremos o dicionário para ser publicado quando a casa for inaugurada", contou Sinvaldo.
Texto e reportagem: Anna Clara Sancho (anna.sancho@odia.com)
FONTE: https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2023/06/6644740-moradores-de-santa-cruz-pedem-que-a-prefeitura-crie-a-casa-museu-augusta-candiani.html
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