quinta-feira, junho 04, 2020

Esquina das Garrafadas



O legal de passear por cidades antigas como o Rio é que você pode encontrar a história enquanto caminha. Esta esquina, entre as ruas do Ouvidor e da Quitanda, seria apenas mais uma para se atravessar apressado pelo centrão  – isso, se a gente não souber o que já rolou aqui. No caso, foi muita pancadaria, em um conflito que se tornaria conhecido como a Noite das Garrafadas e acabaria mudando os rumos do país. Corria o ano de 1831 e o imperador Pedro I já estava bem desgastado no poder. Ele, que proclamara a Independência do país apenas nove anos antes, se autoconcedeu amplos poderes com a Constituição de 1824 e encheu o Ministério e os principais postos do governo com portugueses, o que desagradou aos brasileiros mais nacionalistas. Esse pessoal alegava que o rompimento com a antiga Metrópole, na prática, não mudara tanta coisa. Além disso, o caráter ditatorial do rei, que perseguia jornalistas que o criticavam e tratava adversários políticos com mão de ferro, azedava ainda mais os ânimos. Para piorar as coisas, o governo sofreu fortes revezes na Guerra da Cisplatina, território anexado ao Uruguai e novamente perdido, ao custo de enormes custos humanos e financeiros. 

Dos bate-bocas na Assembleia Nacional às manchetes ácidas de jornais como “Observador Constitucional” e “Farol Paulistano”, a situação passou para os enfrentamentos. A execução de Frei Caneca, que se tornara ativista da Revolução Pernambucana, aumentou a rejeição ao imperador no Nordeste. Em 20 de novembro de 1830, o caldo se entornou de vez quando o jornalista Líbero Badaró, ferrenho crítico do monarca, foi assassinado em São Paulo. O crime foi atribuído aos apoiadores do governo e o clima ficou quase insustentável. Em fevereiro do ano seguinte, Pedro I resolveu visitar as províncias para tentar recuperar apoio, mas era tarde demais. Recebida com hostilidade em Minas Gerais - os sinos das igrejas repicaram toques fúnebres à sua passagem e autoridades locais se vestiram de preto - e sob ameaças de atentados, a comitiva antecipou a volta à capital. 

O partido dos portugueses, então, organizou uma festança no Rossio (atual Praça Tiradentes) para receber o imperador, mas grupos de brasileiros descontentes, incluindo comerciantes, intelectuais liberais, políticos de baixo clero, religiosos reformistas, trabalhadores empobrecidos e desempregados, foram lá tomar satisfações. As provocações logo deram lugar a uma briga generalizada, que durou de 11 a 15 de março. A maior violência aconteceu na noite do dia 13 e o episódio ganhou aquele nome porque cacos de vidro viraram armas. Um dos epicentros da luta foi nesta esquina. Dos sobrados, choviam pedras e garrafas, e os conflitos se estenderam pelas atuais ruas do Rosário, Teófilo Otoni e Uruguaiana. Acuado e sofrendo pressões de Lisboa, D.Pedro I ainda faria uma manobra final, nomeando o chamado Ministério dos Marqueses, todos “notáveis por sua impopularidade” conforme o historiador Werneck Sodré. Àquela altura, militares e republicanos já engrossavam o movimento pela renúncia. 

Acuado no Brasil e ainda sofrendo pressões de Lisboa, o imperador acabaria abdicando ao trono em 7 de abril de 1831, regressando a Portugal. Saiu sem se despedir do príncipe herdeiro, o infante Pedro, de apenas cinco anos e que, mais tarde, seria seu sucessor. Mesmo assim, Pedro I não perderia a majestade: assumiu a Coroa lusitana como D.Pedro IV, destronando o próprio irmão, Miguel. E a esquina famosa ficou por aqui, para o deleite dos passeadores, que podem parar, dar uma boa olhada nos sobrados e sentir a história - felizmente, sem risco de uma garrafada. Mas, como seguro morreu de velho, recomenda-se a observação sob uma das várias marquises.

Originalmente postado no Passeador Carioca

Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego

Um comentário:

José Tadeu do Nascimento disse...

São muitas histórias escondidas no centro do Rio!