Estação de tratamento do Guandu
Fonte: site da CEDAE
Por Eduardo P.Moreira (‘Dado’)
Arquivista em formação
Ano de 2020. O Rio de Janeiro e municípios limítrofes sofrem com uma contaminação da água fornecida pela CEDAE, vinda da estação de tratamento do Guandu, uma das maiores do mundo. As causas apuradas apontam a presença de uma substância produzida por algas, mas certamente a falta de investimentos em saneamento básico regional e infraestrutura técnica e equipamentos colaboraram para que o caos hídrico se instalasse e prejudicasse milhões de habitantes.
O que tem a ferrovia e os trilhos a ver com isso ?
Poderíamos relacionar o assunto “ferrovia” e “águas” ao lembrar que a atual estação de tratamento do Guandu, no município de Nova Iguaçu, foi construída sobre um trecho do antigo leito ferroviário da ligação ferroviária Carlos Sampaio x Austin x Santa Cruz, nas proximidades da antiga Estrada Rio x São Paulo. Esta ferrovia foi criada com a intenção de transportar gado que vinha principalmente do estado de Minas Gerais e do interior do Rio de Janeiro, em direção ao antigo Matadouro de Santa Cruz.
Mapa em uma parede de uma escola do Engenho Novo, mostrando a linha Carlos Sampaio – Austin – Santa Cruz.
Foto: Carlos Alberto Ramos (Melekh) em 2011
Os trens transportando gado chegavam pela Estrada de Ferro Melhoramentos do Brazil (posteriormente nomeada Linha Auxiliar da EF Central do Brasil) e entravam nesta ferrovia na estação de Carlos Sampaio. Entretanto o principal modo era vindo do interior pela linha do Centro da própria Estrada de Ferro Central do Brasil e acessando a ligação Carlos Sampaio x Austin x Santa Cruz na estação de Austin.
A saída à direita seguia em direção a Santa Cruz e ao antigo matadouro, passando por Cabuçu.
Foto: Carlos Alberto Ramos (Melekh) em 2011
A AFTR foi a pioneira em pesquisas nessa linha ao realizar duas caminhadas com extensão de mais de 30 kms, percorrendo o caminho por onde essa ferrovia passava e, surpreendentemente ainda encontrando todas as estações do trecho, vários vestígios, e a saída da linha do Centro em Austin, por um desvio saindo da mesma estação. Em breve postaremos uma matéria sobre essa iniciativa inédita e praticamente exclusiva, devido às dificuldades impostas pela violência urbana atualmente.
Mas voltemos às águas: no limiar dos anos de 1888 e 1889 o Rio de Janeiro e municípios próximos passavam por uma grave crise hídrica. O fornecimento obtido apenas através de mananciais locais, chafarizes e outras fontes não eram suficientes para suprir a demanda necessária para uma população urbana que crescia rapidamente. Com termômetros marcando frequentemente temperaturas médias de 42 graus, a pressão da imprensa e a realização de várias manifestações e protestos (em um deles a população ocupou as ruas desde o Largo da Lapa até a Rua do Ouvidor) levaram o imperador Dom Pedro II a tomar várias providências. Uma delas foi a abertura de um concurso público para a escolha de um escritório de engenharia que elaborasse um projeto de novas obras de canalização e abastecimento de água. Nesse momento a ferrovia “entrou na história”.
Aqueduto na represa de Rio d’Ouro
Fonte: Arquivo Nacional
Desde 1876 a Estrada de Ferro Rio d’Ouro vinha sendo implantada visando a construção e manutenção da rede adutora de água, pura e oriunda dos mananciais da Serra do Couto e do Tinguá, trechos da Serra do Mar em território fluminense. Esta ferrovia é uma das mais instigantes e intrigantes estradas de ferro que foram estudadas e pesquisadas pela equipe da AFTR, tendo alguns poucos dados, registros e detalhes ainda bastante obscuros, apesar de intensa pesquisa empreendida.
Cais no bairro do Caju, que recebia o material para as adutoras de água
Fonte: Arquivo Nacional
Instalações, equipamentos e materiais de construção das adutoras na Quinta do Caju
Fonte: Arquivo Nacional
Partindo do bairro do Caju, onde existia um pequeno porto e cais por onde o material de construção e tubulações chegavam por via marítima, as linhas da ferrovia se ramificavam em diversos ramais pela zona norte do município do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense, alcançando os Rios Santo Antônio, Rio d’Ouro e Rio São Pedro em Nova Iguaçu. Muitas pessoas não sabem, mas os trilhos desta ferrovia passavam por bairros como Cachambi, Abolição, Pilares (paralelamente à antiga Avenida Suburbana), Inhaúma, Bemfica (com “m” mesmo) e vários outros junto à antiga Avenida Automóvel Clube, onde hoje correm os trilhos da linha 2 do Metrô. Na Baixada Fluminense bairros como Miguel Couto, Vila de Cava, Adrianópolis, Xerém, Areia Branca, Parque Estoril, Amapá e outros eram atendidos pela ferrovia, que passou a transportar passageiros em 1883.
Ponte ferroviária e adutora de água na Baixada Fluminense
Fonte: Arquivo Nacional
Nessa época essa era a principal solução buscada para resolver o problema de abastecimento de água. Vários engenheiros apresentavam propostas e prazos variados, normalmente extensos, para a execução e conclusão das obras. Até que o futuro patrono da engenharia nacional (André Gustavo) Paulo de Frontin junto com o também engenheiro (Raimundo Teixeira) Belford Roxo apresentaram a proposta que parecia impossível: em apenas seis dias a cidade do Rio de Janeiro estaria livre da crise de falta de água. O que parecia uma piada perante às demais autoridades e mesmo aos colegas engenheiros, tornou-se realidade e dentro do prazo. Paulo de Frontin, na época com apenas 29 anos de idade, fez apenas algumas exigências: que lhe fossem entregues dois trens da Estrada de Ferro Rio D´Ouro, um contingente de aproximadamente 5 mil trabalhadores e um volume duplicado ou triplicado de enxadas e machados, mais a possibilidade de poder usar à vontade o telégrafo para se comunicar com as autoridades. Em menos de uma semana, a tubulação colocada ao lado da Estrada de Ferro Rio d’Ouro resolveu a questão: 16 milhões de litros por dia foram fornecidos e ajudaram a minimizar a falta d’água que assolava a população.
Esse episódio nos leva a algumas reflexões:
Como antigamente, sem tantos recursos tecnológicos, conseguia-se resolver problemas de grande magnitude gastando pouco e em pouco tempo ?
Por qual motivo as ferrovias tinham mais valor e importância naquela época, e hoje são negligenciadas e extintas sem critérios que justifique, na maioria das vezes ?
Como, com qual merecimento e com quais competências os ocupantes de cargos públicos na política atual conseguem essas vagas ?
Porque a população em sua maioria, antes lutadora de seus direitos e cumpridora de seus deveres, não se esforça em buscar soluções para que a situação melhore ?
Infelizmente a maioria de nós já sabe a(s) resposta(s) … mas o certo é que precisamos muito de um Paulo de Frontin e sua equipe nos dias de hoje.
Tubulação da rede de abastecimento de água paralela à extinta Estrada de Ferro Rio d’Ouro
Instalações da Represa em Rio d’Ouro
Parada ferroviária Represa, em Rio d’Ouro
Fotos: Eduardo P.Moreira (‘Dado’) em 2009
REFERÊNCIAS
COSTA, Heloísa Raquel Inácio, “Bastam seis dias: a domesticação da água e a plataforma republicana na Revista Ilustrada”, acesso em 20 de janeiro de 2020, http://bdm.unb.br/handle/10483/17950
“Paulo de Frontin”, Wikipedia, acesso em 21 de janeiro de 2020, https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_de_Frontin
“Episódio da água em seis dias,” Wikipedia, acesso em 19 de janeiro de 2020, https://pt.wikipedia.org/wiki/Epis%C3%B3dio_da_%C3%A1gua_em_seis_dias
OLIVEIRA, Nildo Carlos, “Os seis dias da história e da glória de Paulo de Frontin, acesso em 22 de janeiro de 2020, https://revistaoe.com.br/os-seis-dias-da-historia-e-da-gloria-de-paulo-de-frontin/
Originariamente postado na página Trilhos do Rio
Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego
5 comentários:
A matéria relacionando fatos passados com nossa realidade é uma maneira muito agradável de conhecermos a história e refletirmos sobre assuntos que afetam sobremaneira a população da nossa cidade. Um incentivo para que se exerça uma cidadania consciente. Parabéns!
Prezada Malu Ibarra
Que bom que você gostou! Fico muito feliz pela visita.
Volte sempre a este singelo blog.
Muito grato!
Obrigado pelo conteúdo informativo. Esse tipo de reflexão não encontramos na imprensa,que notícia apenas e cada vez mais, de forma muito imediatista. Precisamos valorizar o trabalho de professores e pesquisadores para colocarmos as informações em contexto.
Prezado Anônimo
Agradeço pela visita e comentários pertinentes.
Volte sempre a este blog e diga o seu nome.
Um forte abraço!
Mais uma informação interessante.
Bom trabalho e no aguardo de outros.
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