domingo, janeiro 26, 2020

Crise da água e a ferrovia



Estação de tratamento do Guandu
Fonte: site da CEDAE

Por Eduardo P.Moreira (‘Dado’)
Arquivista em formação

Ano de 2020. O Rio de Janeiro e municípios limítrofes sofrem com uma contaminação da água fornecida pela CEDAE, vinda da estação de tratamento do Guandu, uma das maiores do mundo. As causas apuradas apontam a presença de uma substância produzida por algas, mas certamente a falta de investimentos em saneamento básico regional e infraestrutura técnica e equipamentos colaboraram para que o caos hídrico se instalasse e prejudicasse milhões de habitantes. 

O que tem a ferrovia e os trilhos a ver com isso ?

Poderíamos relacionar o assunto “ferrovia” e “águas” ao lembrar que a atual estação de tratamento do Guandu, no município de Nova Iguaçu, foi construída sobre um trecho do antigo leito ferroviário da ligação ferroviária Carlos Sampaio x Austin x Santa Cruz, nas proximidades da antiga Estrada Rio x São Paulo. Esta ferrovia foi criada com a intenção de transportar gado que vinha principalmente do estado de Minas Gerais e do interior do Rio de Janeiro, em direção ao antigo Matadouro de Santa Cruz.


Mapa em uma parede de uma escola do Engenho Novo, mostrando a linha Carlos Sampaio – Austin – Santa Cruz.
Foto: Carlos Alberto Ramos (Melekh) em 2011

Os trens transportando gado chegavam pela Estrada de Ferro Melhoramentos do Brazil (posteriormente nomeada Linha Auxiliar da EF Central do Brasil) e entravam nesta ferrovia na estação de Carlos Sampaio. Entretanto o principal modo era vindo do interior pela linha do Centro da própria Estrada de Ferro Central do Brasil e acessando a ligação Carlos Sampaio x Austin x Santa Cruz na estação de Austin.


A saída à direita seguia em direção a Santa Cruz e ao antigo matadouro, passando por Cabuçu.
Foto: Carlos Alberto Ramos (Melekh) em 2011

A AFTR foi a pioneira em pesquisas nessa linha ao realizar duas caminhadas com extensão de mais de 30 kms, percorrendo o caminho por onde essa ferrovia passava e, surpreendentemente ainda encontrando todas as estações do trecho, vários vestígios, e a saída da linha do Centro em Austin, por um desvio saindo da mesma estação. Em breve postaremos uma matéria sobre essa iniciativa inédita e praticamente exclusiva, devido às dificuldades impostas pela violência urbana atualmente.

Mas voltemos às águas: no limiar dos anos de 1888 e 1889 o Rio de Janeiro e municípios próximos passavam por uma grave crise hídrica. O fornecimento obtido apenas através de mananciais locais, chafarizes e outras fontes não eram suficientes para suprir a demanda necessária para uma população urbana que crescia rapidamente. Com termômetros marcando frequentemente temperaturas médias de 42 graus, a pressão da imprensa e a realização de várias manifestações e protestos (em um deles a população ocupou as ruas desde o Largo da Lapa até a Rua do Ouvidor) levaram o imperador Dom Pedro II a tomar várias providências. Uma delas foi a abertura de um concurso público para a escolha de um escritório de engenharia que elaborasse um projeto de novas obras de canalização e abastecimento de água. Nesse momento a ferrovia “entrou na história”.


Aqueduto na represa de Rio d’Ouro
Fonte: Arquivo Nacional

Desde 1876 a Estrada de Ferro Rio d’Ouro vinha sendo implantada visando a construção e manutenção da rede adutora de água, pura e oriunda dos mananciais da Serra do Couto e do Tinguá, trechos da Serra do Mar em território fluminense. Esta ferrovia é uma das mais instigantes e intrigantes estradas de ferro que foram estudadas e pesquisadas pela equipe da AFTR, tendo alguns poucos dados, registros e detalhes ainda bastante obscuros, apesar de intensa pesquisa empreendida.


Cais no bairro do Caju, que recebia o material para as adutoras de água

Fonte: Arquivo Nacional


Instalações, equipamentos e materiais de construção das adutoras na Quinta do Caju
Fonte: Arquivo Nacional

Partindo do bairro do Caju, onde existia um pequeno porto e cais por onde o material de construção e tubulações chegavam por via marítima, as linhas da ferrovia se ramificavam em diversos ramais pela zona norte do município do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense, alcançando os Rios Santo Antônio, Rio d’Ouro e Rio São Pedro em Nova Iguaçu. Muitas pessoas não sabem, mas os trilhos desta ferrovia passavam por bairros como Cachambi, Abolição, Pilares (paralelamente à antiga Avenida Suburbana), Inhaúma, Bemfica (com “m” mesmo) e vários outros junto à antiga Avenida Automóvel Clube, onde hoje correm os trilhos da linha 2 do Metrô. Na Baixada Fluminense bairros como Miguel Couto, Vila de Cava, Adrianópolis, Xerém, Areia Branca, Parque Estoril, Amapá e outros eram atendidos pela ferrovia, que passou a transportar passageiros em 1883.


Ponte ferroviária e adutora de água na Baixada Fluminense
Fonte: Arquivo Nacional

Nessa época essa era a principal solução buscada para resolver o problema de abastecimento de água. Vários engenheiros apresentavam propostas e prazos variados, normalmente extensos, para a execução e conclusão das obras. Até que o futuro patrono da engenharia nacional (André Gustavo) Paulo de Frontin junto com o também engenheiro (Raimundo Teixeira) Belford Roxo apresentaram a proposta que parecia impossível: em apenas seis dias a cidade do Rio de Janeiro estaria livre da crise de falta de água. O que parecia uma piada perante às demais autoridades e mesmo aos colegas engenheiros, tornou-se realidade e dentro do prazo. Paulo de Frontin, na época com apenas 29 anos de idade, fez apenas algumas exigências: que lhe fossem entregues dois trens da Estrada de Ferro Rio D´Ouro, um contingente de aproximadamente 5 mil trabalhadores e um volume duplicado ou triplicado de enxadas e machados, mais a possibilidade de poder usar à vontade o telégrafo para se comunicar com as autoridades. Em menos de uma semana, a tubulação colocada ao lado da Estrada de Ferro Rio d’Ouro resolveu a questão: 16 milhões de litros por dia foram fornecidos e ajudaram a minimizar a falta d’água que assolava a população.

Esse episódio nos leva a algumas reflexões:

Como antigamente, sem tantos recursos tecnológicos, conseguia-se resolver problemas de grande magnitude gastando pouco e em pouco tempo ?
Por qual motivo as ferrovias tinham mais valor e importância naquela época, e hoje são negligenciadas e extintas sem critérios que justifique, na maioria das vezes ?
Como, com qual merecimento e com quais competências os ocupantes de cargos públicos na política atual conseguem essas vagas ?
Porque a população em sua maioria, antes lutadora de seus direitos e cumpridora de seus deveres, não se esforça em buscar soluções para que a situação melhore ?
Infelizmente a maioria de nós já sabe a(s) resposta(s) … mas o certo é que precisamos muito de um Paulo de Frontin e sua equipe nos dias de hoje.



Tubulação da rede de abastecimento de água paralela à extinta Estrada de Ferro Rio d’Ouro


Instalações da Represa em Rio d’Ouro


Parada ferroviária Represa, em Rio d’Ouro
Fotos: Eduardo P.Moreira (‘Dado’) em 2009

REFERÊNCIAS

COSTA, Heloísa Raquel Inácio, “Bastam seis dias: a domesticação da água e a plataforma republicana na Revista Ilustrada”, acesso em 20 de janeiro de 2020, http://bdm.unb.br/handle/10483/17950

“Paulo de Frontin”, Wikipedia, acesso em 21 de janeiro de 2020, https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_de_Frontin

“Episódio da água em seis dias,” Wikipedia, acesso em 19 de janeiro de 2020, https://pt.wikipedia.org/wiki/Epis%C3%B3dio_da_%C3%A1gua_em_seis_dias

OLIVEIRA, Nildo Carlos, “Os seis dias da história e da glória de Paulo de Frontin, acesso em 22 de janeiro de 2020, https://revistaoe.com.br/os-seis-dias-da-historia-e-da-gloria-de-paulo-de-frontin/

Originariamente postado na página Trilhos do Rio

Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego

5 comentários:

Malu Ibarra disse...

A matéria relacionando fatos passados com nossa realidade é uma maneira muito agradável de conhecermos a história e refletirmos sobre assuntos que afetam sobremaneira a população da nossa cidade. Um incentivo para que se exerça uma cidadania consciente. Parabéns!

Adinalzir disse...

Prezada Malu Ibarra
Que bom que você gostou! Fico muito feliz pela visita.
Volte sempre a este singelo blog.
Muito grato!

Anônimo disse...

Obrigado pelo conteúdo informativo. Esse tipo de reflexão não encontramos na imprensa,que notícia apenas e cada vez mais, de forma muito imediatista. Precisamos valorizar o trabalho de professores e pesquisadores para colocarmos as informações em contexto.

Adinalzir disse...

Prezado Anônimo
Agradeço pela visita e comentários pertinentes.
Volte sempre a este blog e diga o seu nome.
Um forte abraço!

Chrystian Andre disse...

Mais uma informação interessante.
Bom trabalho e no aguardo de outros.