Apesar de Crivella ter qualificado chuva de segunda-feira como "atípica", o Rio de Janeiro sofre com alagamentos, enchentes e tempestades desastrosas desde 1570.
A cidade do Rio de Janeiro ficou literalmente debaixo d´água na noite de 8 de abril de 2019. Pelas redes sociais, cenas de ruas alagadas, pessoas ilhadas, casas destruídas e carros boiando chegavam aos borbotões. A chuvarada não poupou região alguma. De Santa Cruz a Ipanema, da Tijuca ao Vidigal, a água passou fazendo estragos materiais e vítimas fatais. As autoridades manifestaram a surpresa com o temporal. O prefeito Marcelo Crivella, que andou cortando verbas de serviços de combate a enchentes e deslizamentos, considerou a chuva "atípica". Mas será mesmo que alguém com o mínimo conhecimento sobre a história da cidade pode dizer que a enchente surpreendeu os cariocas?
— A cidade do Rio de Janeiro foi fundada lutando contra a natureza. Arrasando morros, drenando pântanos, aterrando mangues, a baía, lagoas e praias, de uma forma um tanto desordenada, chegamos aos trancos e barrancos até aqui. O fato é citado por cronistas e viajantes desde o século XVI.
— Tempestades são inevitáveis. Alterações no clima podem apenas piorar o que é comum desde os tupinambás e se aprofunda com a urbanização descontrolada. O descaso do poder público, as exceções confirmam a regra, só deixou as coisas mais difíceis ao longo dos tempos.
— Na década de 1570, o padre jesuíta José de Anchieta manifestou espanto com as fortes chuvas que alagaram a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
— Uma chuvarada que não saiu da memória dos cariocas aconteceu em 1711, durante uma invasão de piratas franceses. Liderados por Dugay-Trouin, os corsários tomaram o Rio de Janeiro e anunciaram o sequestro da cidade no meio de um temporal que inundou tudo.
— A enchente de 1811 é das mais famosas da cidade. Recebeu até nome: "Águas do monte". Morreu gente, as muralhas da Fortaleza de São Sebastião desabaram, parte do Morro do Castelo veio abaixo. O Príncipe-Regente Dom João ordenou a abertura de todas as igrejas para acolher desabrigados.
— Em 1854, uma enchente acabou com uma procissão de quarta-feira de cinzas e destruiu o centro da cidade. Em 1897, as águas tomaram o Palácio do Itamaraty durante uma festa e arrasaram as ruas vizinhas.
— Olavo Bilac escreveu o seguinte sobre a enchente de 1904, durante as reformas do prefeito Pereira Passos: "Das ruas transformadas em rios, as praças, mudadas em lagoas, os bondes metamorfoseados em gôndolas, - e homens e cachorros nadando, como peixes, pela vasta extensão das águas derramadas”.
— Parte dos morros da Gamboa, Santa Teresa e Santo Antônio foram arrasados pelas águas, durante uma chuvarada em 1906. O Mangue transbordou, o que acontecia com alguma frequência, inundando a Praça da Bandeira e arredores. Em 1924, parte do Morro de São Carlos veio abaixo.
— A enchente de janeiro de 1966 deixou mais de 250 mortos e 50 mil desabrigados. No ano seguinte, um deslizamento em Laranjeiras arrasou uma casa e dois edifícios. Morreram mais de duzentas pessoas. A família de Paulinho Rodrigues, irmão de Nelson Rodrigues e Mário Filho, morreu soterrada.
— A enchente de fevereiro de 1988, logo depois do carnaval, deixou 289 mortos e quase 30 mil desabrigados. O desfile das campeãs daquele ano foi cancelado, com a Marquês de Sapucaí parecendo uma lagoa. Temporais similares são constantes na história da cidade. Grandes enchentes castigaram a Zona Oeste e a Baixada de Jacarepaguá na década de 1990, por exemplo.
Registro nas artes
— Os cariocas apelidaram a enchente de 1864 de "Chuva de pedra". A cidade ficou debaixo d´água, choveu granizo, casas caíram, igrejas foram destelhadas, bois passavam boiando. Machado de Assis, nascido em 1839, conta que nunca se esqueceu daquele dilúvio. Em Dom Casmurro, Machado relata que foi uma enchente que aproximou os meninos Bentinho e Capitu.
— Lima Barreto escreveu a mais famosa crônica sobre enchentes na cidade, em 1915. O escritor acusou Pereira Passos diretamente: "O prefeito Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade, descurou completamente de solucionar esse defeito do nosso Rio."
— J. Carlos fez charges sobre diversas enchentes que apavoraram o Rio na década de 1920. No livro “O Vidente Míope”, que escrevi sobre a obra dele, com organização de imagens do caricaturista Cássio Loredano, falo sobre isso.
— Ari Barroso compôs Aquarela do Brasil por causa de uma enchente que o impediu de sair de casa, em 1939. Indignado porque não poderia ir ao bar tomar umas biritas com os amigos de boêmia, Ari resolveu relaxar ao piano. Enquanto a cidade desabava, Aquarela do Brasil surgia.
— Moreira da Silva gravou “Cidade Lagoa”, de Cícero Nunes e Sebastião Fonseca, em 1959:
"Esta cidade, que ainda é maravilhosa,
Tão cantada em verso e prosa,
Desde os tempos da vovó.
Tem um problema, crônico renitente,
Qualquer chuva causa enchente,
Não precisa ser toró.
Basta que chova, mais ou menos meia hora,
É batata, não demora, enche tudo por aí.
Toda a cidade é uma enorme cachoeira,
Que da Praça da Bandeira,
Vou de lancha a Catumbi."
A quem interessar
— Para quem quiser saber mais, sugiro Vivaldo Coaracy: “Memórias da cidade do Rio de Janeiro”. Vieira Fazenda tem o clássico “Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro”. De Marques Rebelo, grande cronista da cidade, sugiro “O Trapicheiro”, que fala das chuvas. "As enchentes", crônica de Lima Barreto, é facilmente encontrada na rede. As crônicas cariocas de Machado de Assis estão reunidas em "A Semana". Andréa Casa Nova Maia tem o artigo "Memórias de Rio de Janeiro inundado em relatos de cronistas e literatos", publicado nos anais do XXVII Simpósio Nacional de História, realizado em Natal, no Rio Grande do Norte.
— Apesar disso, o prefeito Marcelo Crivella, mais de quatrocentos anos depois de o Padre Anchieta manifestar preocupações com as chuvas de 1570, se declarou surpreso e considerou "atípico" o que aconteceu na cidade em abril de 2019.
Por Luiz Antonio Simas
Originariamente postado epoca.globo.com
Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego
A cidade do Rio de Janeiro ficou literalmente debaixo d´água na noite de 8 de abril de 2019. Pelas redes sociais, cenas de ruas alagadas, pessoas ilhadas, casas destruídas e carros boiando chegavam aos borbotões. A chuvarada não poupou região alguma. De Santa Cruz a Ipanema, da Tijuca ao Vidigal, a água passou fazendo estragos materiais e vítimas fatais. As autoridades manifestaram a surpresa com o temporal. O prefeito Marcelo Crivella, que andou cortando verbas de serviços de combate a enchentes e deslizamentos, considerou a chuva "atípica". Mas será mesmo que alguém com o mínimo conhecimento sobre a história da cidade pode dizer que a enchente surpreendeu os cariocas?
— A cidade do Rio de Janeiro foi fundada lutando contra a natureza. Arrasando morros, drenando pântanos, aterrando mangues, a baía, lagoas e praias, de uma forma um tanto desordenada, chegamos aos trancos e barrancos até aqui. O fato é citado por cronistas e viajantes desde o século XVI.
— Tempestades são inevitáveis. Alterações no clima podem apenas piorar o que é comum desde os tupinambás e se aprofunda com a urbanização descontrolada. O descaso do poder público, as exceções confirmam a regra, só deixou as coisas mais difíceis ao longo dos tempos.
— Na década de 1570, o padre jesuíta José de Anchieta manifestou espanto com as fortes chuvas que alagaram a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
— Uma chuvarada que não saiu da memória dos cariocas aconteceu em 1711, durante uma invasão de piratas franceses. Liderados por Dugay-Trouin, os corsários tomaram o Rio de Janeiro e anunciaram o sequestro da cidade no meio de um temporal que inundou tudo.
— A enchente de 1811 é das mais famosas da cidade. Recebeu até nome: "Águas do monte". Morreu gente, as muralhas da Fortaleza de São Sebastião desabaram, parte do Morro do Castelo veio abaixo. O Príncipe-Regente Dom João ordenou a abertura de todas as igrejas para acolher desabrigados.
— Em 1854, uma enchente acabou com uma procissão de quarta-feira de cinzas e destruiu o centro da cidade. Em 1897, as águas tomaram o Palácio do Itamaraty durante uma festa e arrasaram as ruas vizinhas.
— Olavo Bilac escreveu o seguinte sobre a enchente de 1904, durante as reformas do prefeito Pereira Passos: "Das ruas transformadas em rios, as praças, mudadas em lagoas, os bondes metamorfoseados em gôndolas, - e homens e cachorros nadando, como peixes, pela vasta extensão das águas derramadas”.
— Parte dos morros da Gamboa, Santa Teresa e Santo Antônio foram arrasados pelas águas, durante uma chuvarada em 1906. O Mangue transbordou, o que acontecia com alguma frequência, inundando a Praça da Bandeira e arredores. Em 1924, parte do Morro de São Carlos veio abaixo.
— A enchente de janeiro de 1966 deixou mais de 250 mortos e 50 mil desabrigados. No ano seguinte, um deslizamento em Laranjeiras arrasou uma casa e dois edifícios. Morreram mais de duzentas pessoas. A família de Paulinho Rodrigues, irmão de Nelson Rodrigues e Mário Filho, morreu soterrada.
— A enchente de fevereiro de 1988, logo depois do carnaval, deixou 289 mortos e quase 30 mil desabrigados. O desfile das campeãs daquele ano foi cancelado, com a Marquês de Sapucaí parecendo uma lagoa. Temporais similares são constantes na história da cidade. Grandes enchentes castigaram a Zona Oeste e a Baixada de Jacarepaguá na década de 1990, por exemplo.
Registro nas artes
— Os cariocas apelidaram a enchente de 1864 de "Chuva de pedra". A cidade ficou debaixo d´água, choveu granizo, casas caíram, igrejas foram destelhadas, bois passavam boiando. Machado de Assis, nascido em 1839, conta que nunca se esqueceu daquele dilúvio. Em Dom Casmurro, Machado relata que foi uma enchente que aproximou os meninos Bentinho e Capitu.
— Lima Barreto escreveu a mais famosa crônica sobre enchentes na cidade, em 1915. O escritor acusou Pereira Passos diretamente: "O prefeito Passos, que tanto se interessou pelo embelezamento da cidade, descurou completamente de solucionar esse defeito do nosso Rio."
— J. Carlos fez charges sobre diversas enchentes que apavoraram o Rio na década de 1920. No livro “O Vidente Míope”, que escrevi sobre a obra dele, com organização de imagens do caricaturista Cássio Loredano, falo sobre isso.
— Ari Barroso compôs Aquarela do Brasil por causa de uma enchente que o impediu de sair de casa, em 1939. Indignado porque não poderia ir ao bar tomar umas biritas com os amigos de boêmia, Ari resolveu relaxar ao piano. Enquanto a cidade desabava, Aquarela do Brasil surgia.
— Moreira da Silva gravou “Cidade Lagoa”, de Cícero Nunes e Sebastião Fonseca, em 1959:
"Esta cidade, que ainda é maravilhosa,
Tão cantada em verso e prosa,
Desde os tempos da vovó.
Tem um problema, crônico renitente,
Qualquer chuva causa enchente,
Não precisa ser toró.
Basta que chova, mais ou menos meia hora,
É batata, não demora, enche tudo por aí.
Toda a cidade é uma enorme cachoeira,
Que da Praça da Bandeira,
Vou de lancha a Catumbi."
A quem interessar
— Para quem quiser saber mais, sugiro Vivaldo Coaracy: “Memórias da cidade do Rio de Janeiro”. Vieira Fazenda tem o clássico “Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro”. De Marques Rebelo, grande cronista da cidade, sugiro “O Trapicheiro”, que fala das chuvas. "As enchentes", crônica de Lima Barreto, é facilmente encontrada na rede. As crônicas cariocas de Machado de Assis estão reunidas em "A Semana". Andréa Casa Nova Maia tem o artigo "Memórias de Rio de Janeiro inundado em relatos de cronistas e literatos", publicado nos anais do XXVII Simpósio Nacional de História, realizado em Natal, no Rio Grande do Norte.
— Apesar disso, o prefeito Marcelo Crivella, mais de quatrocentos anos depois de o Padre Anchieta manifestar preocupações com as chuvas de 1570, se declarou surpreso e considerou "atípico" o que aconteceu na cidade em abril de 2019.
Por Luiz Antonio Simas
Originariamente postado epoca.globo.com
Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego
2 comentários:
Crivella é um dos piores prefeitos que o Rio já teve!
E quem sofre é a nossa população.
Prezada Helena Brasiliana
Concordo plenamente com você.
Um grande abraço e volte sempre!
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