Os anseios passantes no mais famoso cruzamento de gente do Brasil.
Do vassoureiro que preserva a profissão retratada por Marc Ferrez no século XIX à persistência de quem viveu uma tragédia e ainda sorri a caminho do trabalho, estação icônica pulsa no olho do furacão, a menos de um mês das eleições gerais.
RIO - Muito maior e mais imponente que o busto de D. Pedro II anexo às plataformas, a estátua do engenheiro Cristiano Benedito Otoni, “pai das estradas de ferro no Brasil”, domina a praça no acesso principal, tendo ao fundo a fachada déco inaugurada há 75 anos, sobre os escombros da antiga estação, de 1858. Deputado no Império e senador pela República, sua sombra de 5,3 metros em bronze paira sobre os 600 mil usuários que passam ali todo dia, aludindo ao peso da política que, desde a Colônia, rege seus destinos. Eleitores suficientes para, hoje, eleger um senador.
Pelo saguão, cruzam-se, a um mês das eleições, as vidas de grande parte dos moradores da Região Metropolitana do Rio, fazendo da icônica estação um encontro de águas dos principais gargalos do funil social, presentes na pauta dos candidatos. Grande parte dos passageiros, pobre e trabalhadora - 97% das classes C e D, dos quais mais de 80% sem grau superior -, se mostra perplexa. Diz não saber em quem votar. Nem se vai voltar para casa.
A bordo de um dos primeiros trens - onde circulam notícias sobre um ambulante baleado no vagão -, Laiza Mora, de 18 anos, corre para bater ponto numa loja de bijuterias na Rua da Alfândega. Ao saltar da composição vinda de Caxias, ela carrega uma triste bagagem:
- Na saída da estação perto da Favela do Lixão, meu ex-namorado, Wallace, foi confundido com um criminoso por esses policiais disfarçados de bandidos, que na verdade são bandidos mesmo. Partiram para a agressão sem checar a identidade. Acabou em óbito.
Ao lado, no ramal de Japeri, da massa emerge o vassoureiro Julio Alves, de 57 anos, que não difere muito do clique de Marc Ferrez retratando, em 1895, o ofício: carrega nas costas seu arsenal de vassouras de piaçava, de pelo (crina de cavalo) e de rodo. Compradas no atacado, garantem margem de lucro de 100%.
- Dá para viver, mas caiu muito. Há dez anos, a média era de 30 por dia. Faturava R$ 200. Hoje, no máximo R$ 80. É muita sujeira nesse país - lamenta, sem notar o trocadilho visual.
Conterrânea do vassoureiro, Rebbeca Cabral, de 35 anos, deixou João Pessoa há dois anos. Mestre em saúde pública, atua como gestora na área de atenção primária do município. Mora em Santa Teresa e vai para a Penha.
- Quando a massa chega, saio num vagão vazio. Também ando no contrafluxo do pensamento: sou otimista. Vejo a luta de perto. Esperamos demais dos políticos, mas temos um exército de gente com soluções. O brasileiro urbano se forma bem como consumidor, e mal como cidadão - analisa.
"Mind The Gap" e o Abismo
Otimista ou não, o cidadão luta. Na volta, às 18h, quando a rampa superlotada traz quem vem do metrô, o advogado Cremildo Santos, de 73 anos, terno bege, espera o trem para Bangu na plataforma de prioridades. Poderia descansar, mas precisa pagar a faculdade do filho. Fugiu de casa na infância, ralou como faxineiro mirim na Zona Sul, garantiu os estudos. Está apreensivo: quando as portas se abrirem, os que vêm do lado oposto avançarão sobre idosos, deficientes, obesos, gestantes. Ele acaba viajando em pé.
- A gente pode estar morrendo, ninguém levanta - lamenta, com um soluço. - Antigamente, bastava olhar nos olhos dos jovens para entender o que queriam. Hoje, antes de entender a gente leva um tiro na cara.
Quando seu Cremildo enfim embarca, ouve-se a voz feminina alertando para o “espaço entre o trem e a plataforma”, com a tradução em inglês - “mind the gap” - que remonta ao alerta do primeiro metrô do mundo, em Londres. Aqui, esse espaço pode chegar a quase um metro, o suficiente para sugar a perna do usuário, ou o corpo inteiro. Mesmo com a renovação da frota, o gap permanece, como sinal do abismo entre as autoridades e o povo.
Resistindo aos desmandos e descasos, a Central pulsa a qualquer hora. Numa noite de domingo chuvoso, Tainara, com o filho Marlon e um agregado, aborda o repórter.
- O senhor é escritor? - pergunta, ao ver o bloco e a caneta. O repórter paga três pastéis e três refrescos (total de R$ 7,50). - Nosso país e nossa cidade tá muito em crise. Marlon teve que largar a escola. A gente dorme na rodoviária. A trocadora deixou fazer uma cabana, tipo barraca de camping.
Na saída que dá para o Morro da Providência, toca o sino do VLT. Em meio aos camelôs fica o Hotel Popular Bárbara Gonzales, onde dorme André Luiz de Castro, de 45 anos. Trabalha no Maracanã sem carteira, para uma empresa de bufês VIP, e dá apoio ao vestiário usado pelo Flamengo.
- Minha vida foi errada. Vida de crime. Andei preso. Agora, vivo de bico a R$ 70 por 12 horas. Pago a pensão da “ex” e tenho filha na creche. Não gosto de droga. Só cerveja e cigarro no varejo. Aqui durmo de graça - conforma-se.
“Idolatria é com Deus”
Um grupo de uns 30 “homens de preto” com crachás de uma igreja cruza o saguão. Na Plataforma 8, um rapaz com bicicleta pede informações. “The train to Saracuruna in about 6 minutes”, anuncia o alto-falante. O domingo já vai acabar. Daqui a seis horas, às 4h30m, as catracas são novamente liberadas. Luciano Araújo, de 40 anos, e o filho, Adriano, 8, desembarcam com anzóis. É garçom em Nova Iguaçu. Está de folga e veio ao Rio pescar, “atrás do do Museu do Amanhã”:
- Tem uns peixinhos lá. Corvina, cocoroca, olho-de-cão. É mais pela diversão...
Todo de branco, o evangélico de Oswaldo Cruz, que prega a palavra no trem, lembra que, quando Jesus ressuscitou, o anjo veio, reluzente, como se feito de neve. Não dá o nome. Não opina:
- Aí complica. Idolatria é direto com Deus. E sem foto.
Tem o cego que passa. A mulher das sacolas. O retirante do Maranhão. São como telas de Debret, versão 2018. E tem a estação, em si. Onde barracas de pastel vencem o fast food. Três tabacarias formam filas. Tem a fé na loteria. Tem tapioca.
No corredor subterrâneo, uma estranha agência oferece imóveis “de zero a R$ 25 mil”, sob o lema “Construindo felicidades”. Como se, disfarçada de corretora, estivesse, ali, uma instalação fora do tempo. Sociedade secreta, utópica, que guarda as senhas para a realização dos sonhos dos que transitam no enclave da Central do Brasil. À espera do expresso que os leve para um país do futuro.
Postado originalmente na página do Jornal O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/as-vesperas-das-eleicoes-central-do-brasil-a-estacao-dos-anseios-23073310
Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego
4 comentários:
Diariamente passo por esse lugar surreal.
Bom texto, gostei.
Valeu Odir Teixeira!
Grato pela visita.
Volte sempre.
Prezado André Luis Mansur
Sua visita e comentário sempre é uma honra por aqui.
Grande abraço!
Postar um comentário