Praça Raul Boaventura - Campo Grande - RJ - Anos 1960-1970.
Arquivo de Adinalzir Pereira. Colorização de Reinaldo Elias.
Arquivo de Adinalzir Pereira. Colorização de Reinaldo Elias.
Tenho lido muitos comentários a respeito de um bairro aprazível em sua história e revoltante em seu presente. Curioso é que eu tenho amigos no face dos mais longínquos lugares e a enxurrada de comentário é maior do que todos os demais reunidos. O que estaria acontecendo? Seria exagero dos comentaristas ou uma verdade e realidade difíceis de serem aceitas.
Infelizmente é o retrato da realidade que se estende sendo o retrato da própria vida. Uma vida que tinha seus dias preenchidos por um bucólico romantismo, porém, que preenchida por uma sequência de inesquecíveis momentos.
Como esquecer a passagem pela linha férrea próxima à velha estação marcada de cada lado pela presença de um Mercado São Domingos de cada lado. Ali juntinha a Rua Ferreira Borges com sua velha delegacia, onde os presos eram bêbados que incomodavam as pessoas na rua, quando tinha algo mais sério até o Sr. Roberto açougueiro dos bons ia com a turma, parecendo mais uma guarda comunitária.
Rodoviária! Que rodoviária que nada, ali era o depósito das carrocinhas da limpeza pública hoje, Comlurb. Na calçada saía o velho 345 Campo Grande-Comari, via INPS, um pouco antes era uma parada e contorno dos bondes. Ao lado na Ferreira Borges, saía a velha e antiga linha Méier Campo Grande, um turismo pelo Rio de Janeiro. E a 786 Campo Grande – Marechal Hermes, bem próximas do Colégio Batista de Campo Grande.
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Saindo da passagem pela linha férrea, que deu lugar ao túnel que vive emporcalhado e mal cheiroso, subia-se a Coronel Agostinho, hoje calçadão de Campo Grande, que por ineficiência das autoridades virou um lugar propício para punguistas e assaltantes. Ali estava a Sapataria Santa Teresinha, onde peguei meu primeiro uniforme completo do Colégio Raja Gabaglia, via caixa escolar e vizinha da Casa Eunice, uma tradição do bairro. Seguindo lá estava uma lojinha pequena à esquerda de quem sobe, onde comprava todos os artigos para que minha mãe pudesse costurar, era simplesmente o tudo. A loja passou para o lado direito de quem sobe e transformou-se na grande Silbene, hoje uma simples lembrança na mente de quem a conheceu. Ao lado, o mercado popular municipal, onde os agricultores do rio da Prata, da Ilha de Guaratiba, da serrinha do Mendanha e regiões próximas traziam seus produtos para vender. Era triste, quando chovia, caminhar algumas vezes por atoleiro entre as barracas. Bem juntinha vinha uma mostra do que é um bairro ter tradição: Whirts chaveiro, Máximo Tamancaria, Sebastião Moreira e o Rápido Campo Grande que juntamente, com o bigode de fogo, davam vida nova aos velhos calçados. Próximo deles estava a famosa Casas da Banha, cujo velho Chacrinha e um casal de porquinhos tornaram-na famosa. Na esquina do Beco do Seridó surgiu a Magal, hoje Superlar, inaugurada com um show de Roberto Carlos, que obrigou todo o comércio a fechar, pois, não cabia todo mundo na velha Coronel Agostinho.
Seguia-se, e chegávamos a Sorveteria Campo Grande, na Cesário de Melo onde hoje está a modernidade, um mini Shopping de produtos de informática. O sabor que se imaginasse lá estava, até que os primeiros sinais de violência aportassem por aqui e desse um ponto final a estas delícias. Em frente a sorveteria estavam unidas e juntas por uma folha de papel, Papelaria IV Centenário e Gráfica Campo Grande e junto a elas a velha Escola Venezuela, cuja matrícula número 01, era de um conhecido personagem do bairro, que ficou famoso como “Melhoral”. Dois passinhos e estávamos na Matriz de Nossa Senhora do Desterro, toda imponente sobre uma elevação de terreno e vista de todos os pontos do bairro, com seu sino pontual às seis horas da tarde. Muito dessa pontualidade, graças à família Arzua. Passava-se pelo velho distrito de Obras, depois Coletoria Pública, DEC, CRE e finalmente estava diante da maior representação cultural de toda Zona Oeste, talvez de boa parte do Rio de Janeiro: Colégio Belisário dos Santos hoje, um estacionamento popular. Ali se formaram verdadeiros homens, lustres autoridades, grandes personalidades políticas, militares, eclesiásticas e gente do povo que tiveram aula de civismo, patriotismo, respeito, educação, honestidade e formação para a vida. Tenho um orgulho que deixo como tesouro para os meus filhos, ter sido professor e coordenador por quatorze anos desta maravilha da cultura nacional.
Campo Grande visto do alto da torre da Igreja de N. S. do Desterro
Continuávamos Rua Augusto Vasconcelos abaixo e logo na esquina estava o café da manhã, sempre saboroso do Senhor Joaquim, que o filho hoje tem um serviço de alto-falante chamado Avaré. Ou o do Senhor Motta, cuja filha Emília, minha aluna no Belisário tornou-se uma grande mestra de Geografia. Próximo o velho BEG, depois BANERJ e finalmente ITAÚ. Na outra ponta do Beco do Seridó, lá estavam duas partes da história de Campo Grande: o restaurante com seu eterno cheirinho de comida caseira e a Academia Dynear Plaza onde muitos deram seus primeiros acordes de violão, órgão, piano e outros. A partir dali conhecemos grandes músicos como, por exemplo, minha ex-aluna Maria Lúcia Barros, filha do saudoso amigo professor João Gualberto Barros, que é a cravista número 1 do mundo, uma honra para nosso bairro. Aliás, falar de cultura musical por aqui é chover no molhado, pois, começando por Adelino Moreira, passa por Adilson Ramos, pela turma do Silvery Boys onde estavam Zezinho e seu irmão, Altamir, Sidney do Renato e seus Blue Caps, André Luis músico das onze, craque de bola e mestre de física, Weber Werneck, os irmãos Assad, Zeca do Trombone, Ney músico, arranjador e produtor e tantos outros que precisaríamos falar só de música num outro texto, para citar-se o Parece que Bebe, O Sereno, O Filhos da Pauta, o Embaixo do Viaduto e tantos outros que marcavam o carnaval de famílias e de alegria que se fazia por aqui, onde destaques como a mulinha de seu Whirts e os blocos de sujos externos pelas pessoas mais limpas internamente.
Fechávamos este pequeno circuito que era usado pelos desfiles de blocos, pelos desfiles cívicos e algumas vezes por procissões religiosas, com a chegada à Praça Raul Boaventura, justa homenagem a um membro de uma família que prestou grandes serviços ao nosso Bairro-Cidade. Ali estava em sua acanhada, porém, eficiente loja, o posto do Correio Brasileiro, vizinho de uma das mais antigas lojas, onde se comprava o long-play desejado, a casa DUX, dos Vitari. Em frente a Estação Ferroviária, onde passaram trens a vapor, elétrico, para Campo Grande, para Santa Cruz, para o Matadouro, o especial da Aeronáutica, a litorina especial para a Central do Brasil por pouco tempo, o parador, o direto, o especial para o Maracanã pouquíssimas vezes e outros que ficaram pelo tempo.
Ali bem próximo entrávamos na Rua Viúva Dantas, aliás, aqui se faz um parêntese, muitos dos personagens que dão nomes as ruas de Campo ,Grande são parentes. Nesta rua está mais um pouquinho da história de nosso cantinho glamoroso. Tavares, Ultralar, Dib´s, CINQ só para começar. Ali esteve, está e continuará por muitos anos a referência em análises clínicas, o Laboratório Tinoco. Tive a honra de conviver com o patriarca e dar aulas aos três que mantiveram a marca famosa, nos padrões criados pelo velho Tinoco.
Banco Itaú? A pouco, pois, ali funcionava uma das mais tradicionais agremiações esportivas do Estado e Clube Social da linha familiar. Ali surgiu Zeny de Azevedo, o popular Algodão, que foi deca-campeão pelo Flamengo e bicampeão Mundial, emprestando hoje seu nome ao ginásio poliesportivo do Centro Esportivo Miécimo da Silva, homenagem para lá de justa. O Clube dos Aliados de grandes bailes, grandes festas e momentos importantes de nossa região, deu lugar a uma agência do Banco Itaú e hoje resplandece em uma grande área da Estrada do Mendanha. Juntamente com o Luso Brasileiro, do qual tive a honra de ser primeiro diretor e depois vice-presidente, onde conheci figuras ímpares da sociedade campograndense como o Sr. José Valgode (sapataria Dá no pé dá no preço), através de quem fui para a diretoria, Prof. Avany Magalhães, um exemplo para mim e uma aula de vida, como foi meu eterno mestre, diretor e ídolo Dr. Helton Alvares Veloso de Castro e está sendo até este momento o mestre Alcir Pimenta, os comerciantes locais Roberto Santos, Nelson dos Bananais, Ribeiro, Artur da gráfica, Chianca, administradores com relevantes serviços como Nilson, Paulinho e Robertinho (Cedae), médicos renomados Dr. Villa e Dr. Malaquias, engenheiros de destaque Dr. Sady e Dr. Agilson Baroni. Ali conheci o que era capacidade de jovens como foi a Ala jovem do clube e uma dupla que vi fazendo sucesso e ajudando por demais o clube em sua ascensão, quando as finanças e consequentemente a arrecadação eram fundamentais: Fernando Valgode e Claudio Chianca A estes espaços principalmente culturais juntava-se a Associação 10 de maio, dando ao Bairro um toque de lazer e cultura, por onde se destacaram Mestre Saul, Oswaldo Machado, Nancília Pereira, Waldir Onofre, Neris Cavalcanti e tantos outros escritores, pintores, artesões, poetas e poetisas, entalhadores e artistas de diversas áreas.
Nossa história é maior, nosso bairro era uma estrela que brilhava forte numa constelação de pequenos brilhos pela cidade. Que bairro do Rio de Janeiro ou que outras cidades que não são capitais tinham ao mesmo tempo três deputados estaduais (Jair Costa, Dílson Alvarenga e Miécimo da Silva) dois Federais (Alcir Pimenta e Daniel Silva) e que diferente da política atual, fizeram seus patrimônios simples, muito mais por suas profissões, professor, médico etc. do que propriamente pelo cargo político exercido. Fizeram graças ao seu próprio trabalho. Transitamos de uma fase meio colonial para a de um bairro com cara de cidade. Em qualquer setor profissional nosso bairro conta com figuras de relevância até mesmo no cenário nacional, como dirigentes, comandantes e responsáveis diretos que nos enchem de orgulho como Doracil Corval, comandante geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. A este se juntam vários outros, muito bem retratados no livro Personalidades da Zona Oeste, brilhante trabalho da escritora Nancília Pereira.
Nosso rincão tem espaço de alegrias e realizações, porém, aos poucos vai nos deixando triste com as modificações que se apresentam, principalmente no comportamento das pessoas e na mudança de hábitos da sociedade como um todo. Orgulhamo-nos de termos Colégio Nossa Senhora do Rosário, Colégio Afonso Celso, porém, sentimos falta de algumas irmãs que por lá passaram, do casal Sreder Bastos, do Monteiro Lobato no calçadão, com as três senhoras que o dirigiam e em educação estava um passo adiante. Temos a alegria de contarmos com o Golfinho Amigo, porém, não temos mais Afonsinho e o espaço Júnior do Belisário (Heltinho). Temos boas churrascarias sem no entanto, podermos almoçar no restaurante do Pepe, temos telefones celulares, porém, a velha Cetel em frente a padaria do misto de padeiro e músico senhor Marques, nos atendia melhor que as operadoras fixas atuais. Temos clínicas com especialidades e equipamentos, porém, as velhas do Carmo, Joari, Urgil, Santa Lúcia, Campo Grande e o velho Rocha Faria atendiam muito melhor.
A infância e a adolescência nos permitiam escrever linhas da história da vida que borracha nenhuma do tempo apagará; brincávamos na rua de amarelinha, hoje amarelamos de medo; rolava um polícia-polícia ladrão entre as ruas e os colegas de rua. Hoje polícia – ladrão – traficante – milícia - o outro não é de brincadeira, é a vera. Dessa forma, isto é, a vera, só bola de gude colorida ou não, que usávamos para zep, triângulo ou roda. Hoje, usam dentro do coquetel molotov. Lembro-me que vinhamos do Campo Grande Atlético clube, outro orgulho nosso, pois, chegou a ser Campeão da Taça de Prata, indo para a 1ª divisão onde estavam Cruzeiro, Internacional, Corinthians, Santos e outros grandes do Rio de Janeiro, pela madrugada, após o baile e cantávamos pela rua as músicas que acabávamos de ouvir. Hoje, na saída dos bailes o único som é bala cantando.
Passa um filme pelas nossas mentes com a Administração Regional ainda na Cesário de Melo, hoje um prédio mal conservado longe do Centro; do velho Sara onde hoje é a agência do Bradesco em frente ao Beco do Seridó, hoje também longe do centro e apesar da estrutura humana bem montada, não consegue exercer o papel que deveria.
As casas de famílias vão dando lugar a lojas e salas comerciais, as famílias como se num estalar de dedos desaparecem, indo para pontos distantes de nosso bairro (eu me penitencio, pois, fui um dos que fez isso) e aos poucos vai se descaracterizando o mais charmoso dos bairros do Rio de Janeiro, cuja a avassaladora especulação imobiliária, juntou-se a uma proliferação de conjuntos habitacionais, a uma insegurança pela falta de controle fruto de um crescimento sem planejamento e hoje um bairro família, transformou-se num bairro popular. Mantém sua história, porém, em papéis guardados, algumas mentes, e em construções que teimam em resistir ao tempo. Já é hora de criarmos uma casa de cultura, não necessariamente um museu, para que possamos preservar essa história, que sem exageros, contada em sua íntegra é mais bonita do que a de muitas cidades.
Aos meus irmãos campo-grandenses fiz um relato muito resumido e com certeza, omiti fatos, casos e personagens, porém, não foi por esquecimento, mas sim, para que tornasse possível de ser lido, sem que cansássemos apesar da beleza da história. Um abraço a todos.
Texto de Arnaldo Menezes.
Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego.