domingo, dezembro 03, 2023

"Memórias de Santa Cruz" de autoria de Manoel Martins do Couto Reis

Uma das primeiras obras de que se tem notícia sobre Santa Cruz é o texto intitulado "Memórias de Santa Cruz" de autoria de Manoel Martins do Couto Reis. 

Sobre ele, é importante ler o que diz o professor Sinvaldo do Nascimento Souza, um dos principais pesquisadores da história de Santa Cruz, "Em 1983 o NOPH publicou as "Memórias de Santa Cruz", escritas em 1804 pelo então superintendente da Real Fazenda de Santa Cruz, Manoel Martins do Couto Reis, a partir do original que se encontra na Biblioteca Nacional. No entanto, "as memórias" escritas em 1804 não eram a primeira versão daquele documento. A primeira vez que o Coronel do Couto Reis escreveu as "memórias de Santa Cruz" foi em 1799, conforme se pode verificar na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, nº 65, tomo 2, páginas 301 a 321". Ainda sobre Couto Reis, é importante ler também o que diz Alberto Moby, outro importante historiador santa-cruzense. Embora falem basicamente das mesmas coisas, as duas versões das "memórias" são diferentes em seus objetivos: a versão de 1799 é mais descritiva e preocupada em relatar o que foi a fazenda desde a administração dos jesuítas e os projetos traçados pelo Coronel para o futuro, a de 1804 é mais uma série de reclamações contra uma certa ingenuidade da Coroa, segundo ele, ao tratar as questões da fazenda e contra as intrigas que se faziam na Corte contra a sua administração. Quais teriam sido os motivos que levaram Couto Reis a chegar a tais conclusões? Teriam fundamento as suas reclamações? Que transformações ocorreram em Santa Cruz nos 5 anos que separam as duas versões? 

Na primeira parte das "memórias", em ambas as versões, as ideias principais seguem as mesmas linhas. O Coronel Couto Reis inicia as "memórias" por uma descrição geográfica detalhada da então Real Fazenda de Santa Cruz: descreve a sua beleza como 'uma bella porção de terra dignamente estimada pela melhor ou por uma das situações mais admiráveis e circunvizinhas do Rio de Janeiro' na primeira versão, fórmula que simplifica, na versão de 1804, para a porção mais bella dos territórios do Rio de Janeiro. Descreve suas terras, sua fertilidade, a proximidade com o porto de Sepetiba e, apenas na versão de 1804, acrescenta uma nota sobre as dificuldades de transporte dos produtos, assinalando que, no governo do Vice-Rei D. Luís de Vasconcellos e Souza (1779-1790), se começou a construir uma estrada em condições de escoar a produção da fazenda para a província, que foi, no entanto, interrompida, com a saída de D. Luís do governo. 

Já neste início se pode observar, nas duas redações das "memórias", o interesse de Couto Reis em convencer a Coroa da viabilidade da Fazenda de Santa Cruz, bastando, para isso, que se desse a ela os recursos necessários ao seu desenvolvimento. Mesmo antes de Manoel Martins do Couto Reis assumir como superintendente já se pensava em vendê-Ia devido à franca decadência, causada segundo o Coronel, por uma série de administrações incompetentes no período que ia da expulsão dos jesuítas (1760) até a sua chegada a Santa Cruz. Coincidem ainda, as duas versões quanto à engenhosidade e perseverança do trabalho dos jesuítas, primeiros proprietários da fazenda, no que diz respeito ao aproveitamento das terras à sua engenharia na proteção contra as cheias anuais do rio Guandu e o trato com os escravos. Segundo o historiador e engenheiro José Saldanha da Gama, também superintendente de Santa Cruz, num período posterior ao de Couto Reis, para o escoamento das águas do Guandu, os jesuítas teriam construído um canal medindo 10,859 Km. O melhor exemplo da habilidade e engenhosidade do trabalho jesuítico em Santa Cruz talvez seja, ainda hoje, a Ponte dos Jesuítas, recentemente restaurada graças ao esforço e tenacidade do NOPH. Embora, a partir daí, a redação das duas versões das “memórias” comece a se distanciar, o Coronel Couto Reis continua, em ambas as versões, a defender o trabalho dos jesuítas, marcado especialmente pelo trato com os escravos. Couto Reis relaciona a prosperidade da fazenda nos tempos jesuíticos à "propagação, boa educação, e conservação dos escravos aos dictames de uma doutrina sólida, e amável obediência", à conservação dos campos para o cultivo e como pasto para o gado, à conservação dos canais e do dique e o cuidado com relação ao gado bovino, que era o principal produto da economia de Santa Cruz na época jesuítica.

Em seguida Couto Reis traça um quadro da decadência da fazenda que, segundo ele, tem origem nas administrações que, ao substituírem os jesuítas, expulsos do Brasil, levaram 'mil desordens e abusos, devorando todo o bom sistema'. Ao que parece, a preocupação de Couto Reis em eximir de culpa a administração dos padres da Companhia de Jesus e relacioná-la às administrações posteriores, está ligada ao interesse da Coroa em se desfazer da fazenda. O Estado português estava em crise, já não figurando entre as primeiras potências europeias, resultado da passagem da fase mercantilista para a fase capitalista, que Portugal não foi capaz de acompanhar. Sendo assim, entre investir na fazenda para obter lucro a médio ou a longo prazos e vendê-la para obter lucro a curto prazo, a tendência era pela segunda opção.

O Coronel Couto Reis era ferrenho defensor da manutenção da fazenda como propriedade da Coroa, o que significaria, em última análise, a sua própria manutenção enquanto superior de Santa Cruz. Várias vezes Couto Reis se declara admirador incondicional do  método jesuítico e disposto a aplicá-lo novamente, certo de que o estilo de administração dos jesuítas era o único capaz de reerguer a economia da fazenda. Baseado nisto o Coronel, na redação de 1799, propõe a Coroa um plano para reerguer a fazenda, desde que lhe sejam dados recursos financeiros: a construção de currais para abrigar o gado perdido pelas imensas pastagens de Santa Cruz e que pretendia recuperar; a reeducação dos escravos nos moldes jesuíticos; a construção de dois engenhos, um em Itaguaí e outro em Piai, naquela época já iniciada; plantar mandioca, arroz, feijão, milho, algodão e café, a construção de uma serraria; o restabelecimento do cuidado com os campos e rios, etc. No entanto, entre 1799 e 1804 uma serie de medidas foram sendo tomadas pela Coroa, visando a lenta e gradual desativação da fazenda como um todo. A medida da qual Couto Reis mais se tenha ressentido foi a autorização da venda dos dois engenhos pela Carta Régia de 7 de novembro de 1803. Para ele o principal culpado por esta medida teria sido D. Luís Beltrão de Gouveia de Almeida, então chanceler da Coroa, que era o principal defensor da venda da Fazenda de Santa Cruz em lotes, já que era praticamente impossível que alguém tivesse capital suficiente para compra-la inteira, devido a sua grande extensão. Por isso, na versão de 1804, o Coronel Couto Reis acusa Luís Beltrão de, "fingindo-se de zeloso do bem público, e das arrecadações da Fazenda Real e arrancar da mãos dos Vice-Reis todo o poder". Preocupado em acusar Luís Beltrão, por um lado, e de fazer a defesa da sua própria, por outro, o Coronel Couto Reis não foi capaz de fazer uma consideração crítica sobre as opiniões de seus opositores e de seus argumentos. A crise do antigo sistema colonial já não permitia a Portugal perder tempo com investimentos a médio e a longo prazo, o que Couto Reis não pôde ou não quis perceber. Certamente ainda há muito que pesquisar sobre esse período da história do Brasil, o que seria, sem dúvida, uma contribuição importante para a historiografia sobre o fim do sistema colonial. As duas versões das "memórias" do Coronel Couto Reis são dois documentos obrigatórios para quem quiser fazê-lo.

Segundo o Professor Sinvaldo, "Além das obras já citadas é importante destacar também "Reparos sobre a atual decadência da Real Fazenda de Santa Cruz" texto ainda inédito, escrito em 1816. Outra obra conhecida de Couto Reis foi por ele intitulada "Informações acerca dos brejos de São João Grande e de São João Pequeno da Real Fazenda de Santa Cruz". As cópias pertenciam ao antigo Arquivo Militar, uma com 3 folhas e a outra com 5 páginas, bem como algumas cartas topográficas inéditas do próprio Couto Reis. Além disso existem inúmeras cartas escritas pelo autor em questão, sobre assuntos variados como por exemplo ao Marquês de Aguiar, "Acerca da necessidade de se estabelecer cartas geográficas bem calculadas em todas as capitanias do Brasil, em que se indiquem individualmente as suas partes centrais" cujo original se encontra na Biblioteca Nacional. Cartas diversas ao Conde de Rezende; a S. M. Rainha de Portugal; a José Bonifácio de Andrada e Silva; "Notícias de Santa Cruz"; "Exposição sobre os problemas que lhe trazia a notícia da venda da Fazenda de Santa Cruz", "Plano para uma melhor exploração da Real Fazenda de Santa Cruz"; "Ofícios ao Desembargador Manoel C. S. Gusmão", etc. Todos manuscritos inéditos existentes no Arquivo Nacional. Podemos verificar, apenas citando algumas das obras inéditas de Manuel Martins do Couto Reis, que se trata de um autor cuja bibliografia vem requerendo outras pesquisas para que se possa melhor dimensionar, não apenas a história de um administrador, de um militar brasileiro bem sucedido, mas de toda a nossa sociedade; da problemática quanto ao relacionamento interpessoal então existente; das forças contrárias àqueles que buscavam melhores soluções para a "nossa" economia e também a história no seu aspecto regional e nacional, numa época em que a Nação brasileira ainda não havia sido consolidada".

Pesquisa feita pelo autor deste blog. Em 04 de dezembro de 2023.

5 comentários:

Anônimo disse...

Caro professor Adinalzir. Excelente sinopse sobre as obras de Manoel Martins do Couto Reis. Tenho procurado as "Memórias de São João Grande e de São João Pequeno da Real Fazenda de Santa Cruz, mas, por motivos infelizmente não o tive êxito. Se você tiver uma cópia peço a gentileza de me contatar. Luis Carlos Reis.

Anônimo disse...

Gostaria,de esclarecer,algumas dúvidas, que tenho , sobre COUTO REIS : nome de sua esposa,e nome de seu filho,nascido em Santa Cruz !
Gostaria de ver,algumas fotos suas !
Outra dúvida: te do sido,ele, tão importante pa Campos dos Goytacazes e

Roberto Aires disse...

Enquanto os jesuitas eram expulsos e fechados seus colégios e fazendas, o luterana Alemanha e a ortodoxa Rússia contaram com eles para seu progresso cultural, científico e econômico. Os EUA contariam também com eles. O resultado aí está.

Adinalzir disse...

Exatamente, Roberto Aires!

Anônimo disse...

Parabéns Adinalzir. Show!