sexta-feira, maio 12, 2023

Lembranças de infância


"Quando criança, vínhamos para a então Zona Rural passar o fim de semana.

Houve um período em que a viagem era fantástica, pois englobava a primeira aventura na travessia da Baía de Guanabara através das antigas barcas.

Geralmente, saíamos tarde da noite, pois naquele tempo, tínhamos a felicidade da liberdade. Como as barcas transitavam durante toda a noite, lá pelas 22 horas estávamos adentrando àquela enorme nave, cujos assoalhos eram encerados e o frescor marítimo deslizava em nossos rostos e cabelos. E Niterói ficava para trás.

Ao chegarmos à Praça XV, andávamos pelas ruas estreitas e desertas do Rio de Janeiro, até a Central do Brasil. 

Não havia pessoas dormindo sob as marquises nem o perigo de alguém nos abordar para nos tirar qualquer joia ou mesmo a mais preciosa - a vida. E eu olhava em direção oposta, pois apesar da distância, já na Avenida Presidente Vargas, as torres da igreja da Candelária pareciam aumentar na escuridão da noite, ainda que as luzes artificiais ofuscassem tanto a luminosidade da lua e a pigmentação das estrelas. E tudo ia ficando para trás.

Já na Estação Central do Brasil, o cheiro dos trens sempre esteve presente no ar, embora os funcionários limpassem o chão com um esfregão e detergente perfumado.

O comboio era uma curiosidade para as crianças que não estavam acostumadas a percorrer ferrovias. E o trem partia, deixando tudo para trás.

Já na Roça das Águas, o carro de aluguel era quase sempre o de conhecidos, que nos conduziam ao sítio da Vovó Marieta, na Estrada do Carapiá, quando Guaratiba pertencia a Campo Grande. Sim, naquela época, o cartório, o hospital, a delegacia, o colégio, todos os serviços essenciais eram em Campo Grande e todos os que nasciam em toda a região de Guaratiba, inclusive o início da serra do Grumari, na Barra de Guaratiba, em Pedra de Guaratiba, todos, quando perguntados, diziam residir em Campo Grande, jamais em Guaratiba, até porque, na cidade do Rio de Janeiro, poucos conheciam a região.

O carro partia e o centro de Campo Grande, a Rua Coronel Agostinho, hoje o Calçadão, tudo ficava para trás.

O carro tomava a Estrada do Joari, hoje Rua Olinda Ellis, passava pela ponte esperada, fazia a curva em quase 90 graus da Estrada do Cachamorra e logo o cheiro dos eucaliptos inundava em nossas narinas. Era vegetação e cheiro de ver até o famoso Largo do Correia, quando víamos um pouco mais de residências e uma pracinha com postes antigos, de ferro, com suas cúpulas lindas do século XIX. Hoje, tais postes não existem mais. E, se existem, com certeza, algum Magneto político os confiscou para enfeitar a entrada de sua fazenda, como sempre fazem. Os postes ficaram também para trás.

Ao adentrarmos a Estrada do Morro Cavado, eu via uma igrejinha protestante que muito me chamava a atenção.

Algumas vezes, quando passávamos por ali durante manhãs de domingo, eu ouvia os cânticos e tudo aquilo me fascinava.

Certa vez, ouvi: "Mais perto quero estar meu Deus de Ti". E continuávamos o nosso caminho e a igrejinha ficava para trás.

O mundo andou para frente, a população cresceu e precisaram fazer outra igreja, ao lado, e apesar dos horrorosos fios dos postes enfearem a paisagem,  não deixaram para trás a imagem do alicerce daquela comunidade. Se passarmos por ali, os dois templos estão de pé. E eu renasço só de ver a 'minha' igrejinha, onde  o desejo era também cantar tão belamente. Nossa, com tantas lembranças, obrigado meu D'us, pois nem a minha infância ficou para trás". 

Texto de Will Tom.

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