sábado, maio 30, 2020

História dos fuzilados de Sepetiba



Os ecos da Revolta da Armada se faziam ouvir ainda um ano depois de iniciado o levante de marinheiros contra o governo de Floriano Peixoto. A Revolta tinha como objetivo principal exigir novas eleições e maior consideração do governo federal em relação à Marinha, que se sentia inferior ao Exército.

Reflexo dos primeiros dez anos de instabilidade do regime republicano recém proclamado, não fora só no ano de 1893 que Armada se levantou em protestos contra os presidentes: em 1891, Deodoro da Fonseca teria enfrentado igual descontentamento dos militares da força marítima, que se insurgiu contra a atitude do então presidente de fechar o congresso, contrariando a Constituição Federal que regia aquele ano. Vale ressaltar o viés monárquico da Marinha daquele momento, cujos altos escalões tinham forte sentimento e lealdade pelo regime deposto anos antes, assim como por seu representante maior, o imperador D. Pedro II.

Os acontecimentos de 1893 que eclodiram na baía da Guanabara foram destacados em diversos jornais, que dividiam opiniões em relação ao levante. Notícias sensacionalistas se espalhavam por páginas favoráveis ao governo, destacando os bombardeios que os revoltosos protagonizavam contra a cidade; os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo se viram na mira dos canhões dos navios ancorados na baía, assim como o que hoje compõe o Centro da cidade, fazendo boa parte da população abandonar seus lares em direção à linha férrea da estação Central do Brasil, rumo aos subúrbios.


E não só o Rio de Janeiro fora palco dos acontecimentos, que se desdobraram para Santa Catarina. Em 1894, os ânimos revoltosos incendiavam marinheiros daquele estado. Importante lembrar que a região já se encontrava em constantes conflitos causados pela chamada Revolução Federalista, iniciada em 1893, que tentava derrubar Júlio de Castilhos.

E como Sepetiba se acha no meio desses acontecimentos que movimentaram o cenário nacional logo nos primeiros anos de governo republicano? A localidade, situada na atual Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, sempre fora característica por sua atividade pesqueira. Manobras militares por muitas vezes tiveram a baía de Sepetiba como palco para exercícios de navios.

Em 19 de Dezembro de 1894, o Jornal do Brasil noticiava:

“Por occasião do Uranus forçar a barra durante a revolta, foram prisioneiros pelas forças da linha de vigilância de Sepetiba, 22 indivíduos, ainda bem moços, pois ainda regulavam entre 18 e 20 annos. Pouco tempo depois, um capitão que commandava a força militar que guarnecia o cruzador Centauro, a serviço do governo, e que estava fundeado em uma enseada perto daquelle local requisitou-os do commandante da referida linha de vigilância. Os menores foram entregues amarrados a um tenente e depois enviados para bordo do navio”.

Era noticiada a captura de possíveis participantes da revolta, que a bordo do navio Uranus, tentavam entrar no Rio de Janeiro pela baía de Sepetiba. Os jovens foram feitos prisioneiros pelos militares que vigiavam o local. Chama atenção a forma que os considerados traidores eram tratados pelas “forças do governo”. Amarrados, os jovens foram levados a bordo de outro navio para serem interrogados. A notícia continua:

“Alli chegados, a despeito de declararem terem sido prisioneiro dos revoltosos em Santa Catarina, e portanto, nãos erem criminosos, foram removidos e levados para a ilha da Pescaria e alli bárbara e sumariamente fuzilados, com excepção, porém, de um, que, procurando fugir, atirou-se ao mar, morrendo afogado”.

Quem hoje frequenta a ilha da Pescaria, uma pequena península que fica próxima à praia Dona Luiza, no atual bairro de Sepetiba, muito provavelmente não imagina que divide o mesmo espaço com as almas desses jovens que tiveram seus destinos traçados pelas ordens de um comandante militar. O acontecimento abalou não só a população local, mas também oficiais militares que guarneciam o local. O jornal dá continuidade à narração da notícia:

“Este facto alarmou e entristeceu a toda a população de Sepetiba e até mesmo justos e merecidos protestos da parte do major commandante da força ahí estacionada, que reclamou pela falta ao menos de um conselho que justificasse o acto”.

A execução sumária de jovens tidos como subversivos, revoltosos e vagabundos é uma das heranças que nossa sociedade carrega até os dias atuais. Percebe-se que até mesmo a quebra da legalidade é mantida em prol de interesses particulares, buscando satisfazer uma espécie de sadismo com o qual levamos todos os dias para nosso travesseiro.


Marcado pelo mandonismo e o autoritarismo, o comandante que chefiou o fuzilamento, diante da reprovação popular e de seus companheiros de farda, deixa claro que faria o mesmo com “aquelles que o censurarem”. Nada diferente de nossos dias.

Atitudes como essa se deram não apenas na baía de Sepetiba. Em março de 1895 a Gazeta de Notícias mostra que as “víctimas da soldadesca” foram muitas e em diversos pontos do Rio de Janeiro: Magé, ilha do Boqueirão, Paquetá e Realengo foram o fim da linha para muitos os insurgentes.

Nas edições de 23 e 24 de Dezembro de 1894, o Jornal do Brasil deu continuidade à cobertura do fato, que caracterizou como “tão surprehendente, pelas circunstancias que o rodeavam”. O jornal apontava a falta de interesse de oficiais superiores e a falta de legalidade do fato. Diante da “falta de ordem do ministro da Guerra, do commandante da praça, e falta do respectivo processo, e terem sido seus autores oficciaes inferiores que procedem sem annuencia de seus chefes nem ordem alguma destes, que até manifestaram-se prazerosos, que não duvidamos em enviar àquelle lugar um dos nossos companheiros de trabalho afim de descobrir a verdade”.

Entretanto, os efeitos das ameaças do comandante fizeram efeito entre a população local. O repórter enviado ao local encontrou dificuldades para entrevistar os locais, que o encaravam com ares de desconfiança. O pescador Antônio Lopes, que vivia do “commercio da pesca de peixe”, foi o primeiro entrevistado. Deu detalhes de navios que viu na localidade durante a revolta, mas foi relutante em diversos momentos, principalmente em dar sua opinião sobre o fuzilamento:

“ – Diga-me, nunca ouviu fallar no fuzilamento de moços prisioneiros do vapor Uranus?
Lopes, a esta minha pergunta, mais se accentuou o seu constrangimento pela minha impertinencia e dizendo-me – Não sei! E retirando-se demonstrou-me que nada mais diria”.

O insistente repórter encontrou outro entrevistado, Reginaldo, um senhor de 54 anos, barbudo, que aparentava ser um pescador. Dele, o enviado pelo jornal conseguiu extrair muitas informações de grande valor não só para sua matéria, mas para nós do futuro, a começar pelos dados que este senhor nos informa: os jovens teriam sido feitos prisioneiros em Guaratiba e levados para o quartel instalado em Santa Cruz (“olhe que não é a fortaleza; é aqui, a fazenda”). O horário do fuzilamento, segundo o homem, teria sido as 16h de um dia como aquele, chuvoso: “Eram vinte e tantos moços que se foi buscar em Guaratiba…”.

O pescador foi mais detalhista quanto aos autores do fuzilamento e aponta o tenente da embarcação de nome Lamego como mandante: “Todos aqui dizem, até os bichos se soubessem fallar, pois que isto não é segredo…”. O nome do militar era Marcos Tulio. Os dois se dirigiram até o local do ocorrido e lá continuaram a conversar.
Logo após saírem do local, foram até a casa de um outro senhor de nome José Floriano de Souza, de 60 anos. Segundo o jornalista, este aparentava ser de uma “melhor sociedade”, que relatou o mesmo que o pescador. Floriano disse que fora convidado para assistir ao fuzilamento, mas declinou o convite por não gostar dessas coisas: “sou pae e vi os pobres que foram victimados”. Os jovens, segundo Floriano, foram enterrados em covas abertas pelos seus próprios algozes, praças do 14º batalhão, ali mesmo, na ilha, “debaixo d’aquella sepetiabeira que jazem elles”.

Floriano nos deixa mais pistas sobre um outro ato de fuzilamento que teria acontecido, dessa vez com jovens levados da Ilha Grande até Sepetiba. Segundo a descrição do jornalista, a memória do acontecido era reprovada por Floriano, que diz “Deus queira que nunca mais tenhamos dessas cousas, que são um horror!”.
As descrições dadas por Reginaldo e Floriano nos deixam grandes relatos dessa execução. Veio se juntar aos relatos a descrição de mais um morador do local, o português Annibal Soutinho. Este relatou ter visto toda a movimentação do fato e descreve:

“Foram alli na ilha (e apontou em direcção a ilha da Pescaria), eram uns trinta e tantos homens do Uranus que vieram prisioneiros. (…) foi de tarde, por volta das 4 horas, à vista de todo o povo. Aquelles que não viram ouviram as detonações. (…) foram collocados no plano inferior da ilha, aos magotes e a força executara naquelle mais alto (disse, novamente, apontando para o ponto indicado, a colina situada no meio de um dos braços da ilha) de forma que houve muitas descargas”.

O português indicou ao jornalista que buscasse maiores informações e detalhes com o senhor Custódio Campos, que pertencia ao 13º batalhão da guarda nacional, ocupando o posto de alferes. Custódio confirmaria em seus relatos boa parte dos testemunhos anteriores, e ainda acrescentaria que dos presos em Guaratiba e na Ilha Grande nem todos foram fuzilados, sendo alguns mandados para prisões na “côrte” – ou seja, na então cidade. Segundo o alferes, todos se entregaram sem resistência por estarem muito debilitados.

Um deles estaria residindo na rua da Misericórdia. Na edição dos dias 26 e 27 do Jornal do Brasil o repórter dá continuidade às suas buscas por detalhes e vai até a casa de um dos sobreviventes. Este morava em um cortiço na rua que indicara Custódio. Lá, entrevistou a portuguesa dona Maria Emília, esposa de Joaquim da Cruz Oliveira. Ela também deixou alguns detalhes dados pelos entrevistados anteriores e revelou que seu marido fora poupado por ser apenas membro da tripulação do Uranus, operando nas máquinas da embarcação. Apesar de ter sido levado junto com os revoltosos para o batalhão de Santa Cruz, Joaquim foi libertado mediante a comprovação de sua inocência. O jornalista segue seu caminho e encontra três amigos, sendo um deles membro do congresso nacional.

Em outro depoimento, colhido junto a um deputado federal (“membro proeminente do congresso nacional, onde occupa saliente posição desde a constituinte, não só pelo seu talento, como também pela posição assumida de chefe político do mais importante districto da União”) em um jantar no hotel Magini, o jornalista colheu informações a respeito do fato: não teriam sido mortos por fuzilamento os revoltosos, mas por golpes de baioneta! Confrontando o deputado com os depoimentos colhidos em Sepetiba a respeito das detonações, o entrevistado argumenta que foram precisos os disparos para forjar um fuzilamento. O diálogo entre repórter e deputado que apontam tais afirmações é o seguinte:

“Não sei para que vocês estão fazendo esta campanha, aliás, de factos bem sabidos. No entanto, você está cumprindo com seu dever. Olhe, eu lhe digo: todas as informações que foram publicadas pelo Jornal do Brasil são verdadeiras, menos uma.

Qual?
O que se refere a fuzilamentos. Não houve tal; todos foram mortos por arma branca.
Então à bayoneta? Peguntei verdadeiramente assombrado por declaração de tanta importância.
Sim.
Mas então como explica os depoimentos de várias testemunhas do facto, e que dizem terem sido as victimas fuziladas?
Você parece criança. Comprehende que era preciso fingir-se, e assim foi feito. Pólvora não faltava…”
Voltando à rua da Misericórdia, nº 90, no Centro da cidade, o repórter foi em busca do relato de Joaquim, marido de Maria Emília, que na ocasião da primeira visita não estava. Este deu seu relato, dizendo ter permanecido encarcerado em Santa Cruz por dez dias até ser comprovada sua inocência. Deu o nome de alguns dos mortos: Raymundo de tal, Xavier, Manuel do Bonfim, Ventura, Agusto Carvalho. Não se lembrava do nome de todos.

Joaquim da Cruz ainda contou alguns fatos que viriam a acrescentar neste quebra-cabeça, como a execução de dois jovens assim que foram capturados, sendo um muito parecido com o abolicionista José do Patrocínio. Antes de ser executado, um deles fora torturado. Seus corpos foram enterrados em covas na praia de Sepetiba, sendo de conhecimento de toda população local.

De 19 de Dezembro de 1894 à segunda metade de Janeiro de 1895, o Jornal do Brasil correu atrás de informações sobre o caso. Entre relatos, entrevistas e cartas de leitores com informações desencontradas sobre o número de mortos que se atiraram nas águas de Sepetiba para tentar fugir do fuzilamento (ou das mortes por baionetas), as averiguações do jornal nos deixam um relato de como foram tratados aqueles que se insurgiram contra o governo de Floriano Peixoto.

Presidente Floriano Peixoto

As execuções sumárias de jovens marinheiros em plena belle époque carioca mostra que nem tudo eram flores em um período de aparente ápice de progresso da humanidade. O acontecido em Sepetiba não foi um caso isolado, como certamente argumentariam nos dias de hoje os mais apaixonados por tais acontecimentos, pretensos defensores da ordem e da família tradicional. E também não é uma exclusividade da época em relação à revoltosos: até hoje nos deparamos com fatos parecidos em nossos noticiários, mostrando nossa herança autoritária e satisfeita por andar às margens da legalidade.

Por Vitor G. Almeida

Originariamente postado em Diário do Rio.Com

Texto sugerido por Flavio Brandão

Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego

Um comentário:

AC disse...

É com muita curiosidade que "mergulho" nestes acontecimentos, pequenos retalhos duma grande peça: a História do Brasil.
Grato.

Abraço