quarta-feira, abril 29, 2020

Muçulmanos escravizados influenciaram arquitetura brasileira



Muxarabis, treliças e até azulejos são alguns dos elementos de origem árabe que foram introduzidos no Brasil por influência dos malês

Talvez você já tenha ouvido o termo “malês” na época da escola, ao estudar o levante de escravizados africanos, de maioria muçulmana, que ocorreu em 1835 na Bahia e ficou conhecido como “Revolta dos Malês”. Os malês — termo que, na língua iorubá, significa “muçulmano” — eram alfabetizados (bilíngues, em muitos casos), e tinham domínio sobre a matemática. E você sabia que eles tiveram grande influência sobre a arquitetura brasileira? É por conta deles, por exemplo, que a sala de estar tem este nome no Brasil. 

A influência africana e a evolução da casa brasileira a partir das mudanças históricas da sociedade é tema de pesquisa para a arquiteta e urbanista Miriam Carla do Nascimento Dias. A evolução da cozinha, por exemplo, é um dos grandes focos da pesquisa da arquiteta. Segundo Miriam, a história do cômodo está diretamente ligada à abolição da escravidão.

Quais foram as principais contribuições dos malês para a arquitetura brasileira?

"Por serem muçulmanos, eles trouxeram para o Brasil uma forte influência da cultura árabe, em que eram instruídos. Apesar de, na época, haver uma proibição legal para qualquer manifestação religiosa que não fosse católica, os malês alforriados tinham por hábito ter em suas casas um cômodo grande, onde recebiam suas visitas para fazerem suas orações que eram chamadas salah ou salat. Aquele espaço chamou-se “sala”, em português do Brasil.

Elementos vazados estão entre os legados dos malês (Foto: Josivan Rodrigues)

"Os malês também trouxeram consigo materiais e técnicas construtivas do mundo árabe utilizadas até os dias de hoje, caso dos muxarabis, das venezianas e das treliças, que são elementos vazados aplicados pelos muçulmanos para que as mulheres, que não podiam andar entre os homens, pudessem ver o mundo externo sem sair de casa e sem serem vistas. No Brasil, onde não se tem esse costume, tais elementos são ainda utilizados para aproveitamento da ventilação e iluminação natural sem a perda da privacidade. Duas técnicas construtivas importantes também foram trazidas por esses imigrantes africanos escravizados: a da confecção de azulejos e das casas geminadas."

Como a evolução da cozinha está relacionada às transformações históricas da sociedade?

"No período pré-abolição da escravidão. A cozinha era o espaço de preparo da comida, porém fazia par com o banheiro como os locais mais sujos da casa. Era um espaço externo à casa, pois exigia um trabalho muito pesado e envolvia muito mais sujeira do que hoje, considerando a presença de fuligem da madeira queimada, gordura por toda parte e o compartilhamento do espaço com animais. Com a abolição, começou-se a pensar em formas de modernizar a cozinha para facilitar a vida das mulheres mais ricas, que não estavam acostumadas com aquele tipo de serviço pesado."

"Foi aí que a cozinha começou a chegar mais perto da casa principal. O uso da chaminé possibilitou introduzir o espaço de vez em um cômodo da casa, tornando-o consideravelmente mais limpo em comparação ao espaço anterior, agora sem o acesso livre dos animais. A tecnologia árabe dos azulejos trazida pelos escravizados malês também mostrou-se muito eficiente na impermeabilização da cozinha, que agora era um dos cômodos da casa que sempre tinha muito contato com água. O  piso de cimento liso ajudava a manter o espaço em ordem."

Este é um tema estudado e pesquisado na arquitetura brasileira, na sua opinião?

"Não. Há uma série de edificações na África, por exemplo, que têm uma característica ímpar. Cidades inteiras com uma riqueza de detalhes que não são divulgadas. Eu tenho a impressão de que, na história do Brasil, houve uma intenção de se esconder aquilo que foi trazido pelos imigrantes africanos. Recentemente, o CAU [Conselho de Arquitetura e Urbanismo] reconheceu um ex-escravo como o primeiro arquiteto paulista, e ninguém conhece a história dele [Joaquim Pinto de Oliveira, chamado de Tebas]. Ele fez o frontispício da Igreja da Sé, e foi o primeiro a fazer um aqueduto para transportar água para o centro de São Paulo. Mas, como ele era escravo, tentaram apagar a história dele.



Originalmente postado em centroimamhussein

Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego

terça-feira, abril 28, 2020

Nota da ANPUH sobre o veto presidencial aos historiadores



Abaixo segue transcrição da nota divulgado no portal da Associação Nacional dos Historiadores (ANPUH) sobre o veto presidencial do projeto de regulamentação da profissão de historiador, no último dia 24 de abril de 2020.

O VETO À HISTÓRIA

Na noite do dia 24 de abril de 2020, o presidente da República, Jair Bolsonaro, vetou o projeto de regulamentação da profissão de historiador, que já havia sido aprovado na Câmara e no Senado. Nós podemos até fingir surpresa com o veto do presidente, mas a questão, porém, é um pouco mais complexa. Sim, tínhamos esperanças, mas o contexto histórico não parecia sinalizar que a assinatura de Bolsonaro seria conquistada facilmente. Ele gosta de usar a caneta e faz isso reiteradamente para destruir, não para construir.

Desde que a atual direção da ANPUH assumiu a gestão, estivemos preocupados em levar adiante o projeto de regulamentação, iniciado há décadas. Muitos de nossos associados nos cobravam uma posição, a despeito dos esforços incomensuráveis de vários ex-presidentes da ANPUH.

A primeira iniciativa para regulamentar a profissão foi o projeto apresentado à Câmara Federal pelo Deputado Almeida Pinto em 1968, logo arquivado pelo Regime Militar. Entre 1983 e 2000, várias propostas foram apresentadas, ainda sem sucesso. Em 2009, foi proposto o projeto do Senador Paulo Paim, mas que demorou bastante nas tramitações entre Câmara e Senado. Este projeto estava parado no Senado até o início deste ano. Logo quando assumimos, designamos o atual 2º Tesoureiro da ANPUH Brasil, o diretor Adalberto Paz (UNIFAP) para deslindar o histórico processo de regulamentação e reiniciar articulações em Brasília. Graças a esse empenho, muito apoiado pela historiadora Lara de Castro, no dia 18 de fevereiro deste ano, o projeto foi finalmente submetido à votação no Senado e aprovado. O texto votado era o projeto de lei que regulamenta a profissão de Historiador, PLS 368/2009, de autoria do senador Paulo Paim (PT), acrescido do texto substitutivo N. 3/2015.

A aprovação foi resultado, pois, de intensa articulação política da diretoria e de nossos associados a favor do projeto no Congresso Nacional. Paz e Castro conduziram as conversações sobre a matéria legislativa com representantes políticos do estado do Amapá, mais especificamente com o Senador Randolfe Rodrigues, historiador de formação e associado à ANPUH-AP. Após a aprovação no Senado, o projeto foi encaminhado à Secretaria da Presidência no dia 2 de abril de 2020, e aguardou a sanção do chefe do executivo federal. O prazo final para veto era o dia 24 de abril de 2020. Sem alarde, no último momento do prazo, Bolsonaro vetou o projeto com pareceres frágeis exarados pelo Advogado da União e pelo Ministério da Economia, ambos espaços políticos de confiança do presidente. Já sabíamos dessa possibilidade, por isso seguimos na mobilização para que o Congresso Nacional derrube o veto presidencial.

Como afirmamos no início, a rejeição não nos surpreende: lidamos com frases e ações diárias de um governo que fere os princípios mais básicos do direito à vida, à informação e à cultura. Além disso, seu principal projeto é o aparelhamento de estruturas autônomas de uma sociedade democrática. A ciência, a história, a justiça, o parlamento só têm valor para este governo se servem aos seus interesses particulares e muitas vezes obscuros. Por isso, os que lá estão trabalham para destruir os espaços de autonomia dos que defendem uma sociedade mais justa, igualitária e, sobretudo, que respeite a história. A única história que serve para este governo é uma “história” servil. Uma “história” servil, porém, é um mito, uma ficção, uma propaganda, mas certamente não é História enquanto um campo científico.

A despeito de tudo que já foi escrito, no Brasil e no exterior, sobre a Ditadura Militar, por exemplo, o presidente insiste em comemorar o 31 de março com o slogan “a revolução democrática de 1964”. Ninguém que tenha estudado história e possa formar opinião sólida neste terreno defenderia a ditadura negando seu caráter autoritário e golpista. Não há opinião sólida que justifique a defesa da censura prévia, da tortura e torturadores.

Em resumo, Bolsonaro tem como projeto destruir a autonomia da História como ciência e como saber. Uma parte da população talvez não compreenda bem para que serve e o que é a história enquanto um campo de conhecimento. Nossa tarefa é enfrentar esse desafio e chegar até essas pessoas. Temos feito muito como associação e como historiografia, mas muito ainda precisamos fazer. A luta pela regulamentação tem sido uma oportunidade para refletir sobre o papel social dos profissionais da história. Isso não significa dizer que a regulamentação fechará a porta para os que se veem como historiadores, ou criará qualquer reserva de mercado.

Para encerrar, vamos listar o que a ANPUH-BRASIL está fazendo neste momento:

1. Retomamos as articulações parlamentares para construir a derrubada do veto presidencial.
2. Estamos estreitando o contato com diversas associações de nossa área e áreas afins para articular ações conjuntas.
3. Buscamos constantemente espaços na grande imprensa e nos portais digitais para divulgar nossa luta e promover as iniciativas dos associados. Vários de nossos associados já produziram por conta própria materiais a respeito e publicaram em seus blogs, jornais e portais, como Jornalistas Livres, Café História etc.).
4. Vamos intensificar o debate e a campanha pela regulamentação, reforçando e valorizando os profissionais da história em suas diversas vocações e espaços de atuação.
5. Desde ontem estamos em campanha permanente em nossas redes sociais, produzindo material e mobilizando a comunidade para aumentar a pressão nos nossos representantes. Apenas no Facebook ontem alcançamos quase 700 mil pessoas.

O que a comunidade historiadora pode fazer?

1. Reforçar o engajamento com todas as redes sociais da Anpuh para que possamos cada vez mais agir de modo articulado e com a velocidade das demandas. É preciso curtir, compartilhar e comentar em nossos espaços públicos digitais.
2. Construir suas próprias iniciativas de comunicação, seja em âmbito individual ou institucional. Núcleos de pesquisa, laboratórios, programas de pós-graduação, departamentos de história, escolas, sindicatos, associações científicas e de classe podem e devem ter ações de história pública, divulgação científica e curadoria de conteúdos. Assim podermos formar uma grande rede de conhecimento seguro e de ação política cidadã.
3. Mobilizar para pressionar e apoiar parlamentares aliados do projeto em diversos níveis e frentes.
4. Buscar espaços nas mídias tradicionais para defender o projeto e ampliar a consciência sobre as funções sociais dos profissionais da história.
5. Apoiar a filiação à ANPUH-BRASIL e outras sociedades científicas.

O presidente vetou o projeto por medo e por má fé. Mas a evidência histórica está aí para todo mundo ver. Enquanto milhares de pessoas morrem, o presidente está preocupado em vetar a profissão de historiador, essencial para explicar a história e o emaranhado de tragédias que enfrentamos. Independente das versões mais ou menos incendiárias a respeito do governo bolsonarista, há evidências históricas indiscutíveis sobre o que ele representa. Continuaremos lutando para que o veto do presidente seja derrubado, mas regulamentada ou não, a profissão de Historiador existe e isso é um fato inquestionável, irrefutável, incontornável.

Márcia Maria Menendes Motta
Presidenta (biênio 2019-2021)
Associação Nacional de História- ANPUH-BRASIL

Originalmente postado em umhistoriador.wordpress

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quinta-feira, abril 23, 2020

A lenda do Mão de Luva


Marco Ricca como Mão de Luva na novela Novo Mundo. (Fotos/Rede Globo)

Os salteadores integravam a parcela da população que as autoridades coloniais designavam como “vadios”, uma impressionante variedade de homens e mulheres que, por diferentes motivos, não foi absorvida nem pela mineração nem pela pecuária ou pela agricultura e perambulava nas franjas da estrutura de produção e da sociedade das Minas. Eles eram os “pés-rapados” — o homem expropriado, sinônimo de desclassificação social — e constituíam um grupo fluido, muito difícil de controlar ou enquadrar. Evidentemente, nem todos os vadios eram salteadores de estradas. Mas, para o viajante, sempre foi uma enorme questão de sorte não topar no seu caminho com um séquito de vadios organizados numa quadrilha de salteadores e acabar a viagem depenado ou assassinado. 

Vários desses grupos fizeram história. A quadrilha de Manuel Henriques, conhecido como Mão de Luva por usar uma luva estofada de couro no lugar da mão decepada numa briga, atuava além do rio Paraibuna, já na capitania do Rio de Janeiro, na região de Cachoeira do Macacu, e sua fama chegou até Lisboa. Organizadíssimo, o bando tinha cerca de duzentos homens, entre brancos, negros forros e pardos, divididos em companhias comandadas por prepostos de confiança do chefe. Explorava clandestinamente o ouro descoberto no local e assaltava os comboios que saíam do porto da Estrela, ao pé da Mantiqueira, rumo a Vila Rica. Mão de Luva descobriu lavras de ouro nos Sertões do Macacu e faiscava clandestinamente com o seu bando.

Fonte: Brasil, uma biografia, de Heloisa Maria Murgel Starling e Lilia Schwarcz. (1° edição)

Quer saber toda a história do Mão de Luva? Clique aqui

Originalmente postado no blograinhasmalditas

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terça-feira, abril 21, 2020

A verdadeira história da Marquesa de Santos, a "vilã" da novela Novo Mundo


Marquesa de Santos, por Francisco Pedro do Amaral, c. 1820-29. Marquesa de Santos (Agatha Moreira) em Novo Mundo.

Domitila de Castro foi por sete anos amante do imperador d. Pedro I. O caso era do conhecimento de todos e repercutiu nacional e internacional, tornando Domitila uma das principais personagens do Primeiro Reinado, e também uma das mais polêmicas. Porém, sua vida não se resume a esse período…

Domitila de Castro Canto e Melo nasceu em 27 de dezembro de 1797, quando São Paulo tinha pouco mais de vinte mil habitantes e nem cogitava ser uma grande metrópole. Ela era filha caçula de João de Castro Canto e Melo e Escolástica Bonifácia de Oliveira Toledo Ribas, ambos de famílias portuguesas ilustres.

Pouco sabemos sobre a infância de Domitila. Provavelmente ela não teve uma educação formal e completa aprendendo apenas a ler e escrever e fazer cálculos matemáticos básicos. O acesso a educação era bastante limitado na época para grande parte da população e especialmente para as mulheres.

Em 13 de janeiro de 1813, aos 15 anos de idade Domitila contraiu matrimônio com Felício Pinto Coelho de Mendonça, de 23 anos. Ele era natural de Minas Gerais e havia chegado a São Paulo há seis meses. Felício era alferes e fazia parte do Primeiro Esquadrão do Corpo de Dragões de Vila Rica, e prometia ter um futuro brilhante no exército.

Após o casamento, Domitila e seu marido passaram a viver em Villa Rica, Minas Gerais. Os filhos não tardaram em chegar. Uma menina chamada Francisca nasceu no final do ano de 1813 e em novembro de 1816 nasceu um menino que recebeu o mesmo nome do pai. Porém, a vida da marquesa em Minas Gerais não foi um conto de fadas.

Felício se mostrou um homem violento e abusivo e Domitila cansada de tanto sofrer nas mãos do marido tomou uma atitude audaciosa: retornou a São Paulo com os filhos. Todavia, reconciliou-se com Felício e voltou para os braços do marido. Em 1818 nasceu o terceiro e último filho do casal, João, que faleceu ainda criança.

Porém, engana-se quem pensa que as coisas pararam por aí. A paz entre o casal durou pouco. Após a morte da mãe, o alferes herdou suas terras e falsificou a assinatura de Domitila para vendê-la e assim ganhar dinheiro. Como se isso não fosse suficiente na tarde de 6 de março de 1819, Felício tentou assassinar Domitila a esfaqueando duas vezes.

Felício (Bruce Gomlevsky) e Domitila (Agatha Moreira) em cena de Novo Mundo. (João Cotta/Globo)

Domitila conseguiu sobreviver ao atentado mas Felício acabou preso. Ele alegava que Domitila estava tendo um caso com um oficial chamado Francisco de Lorena. Ela negou tudo. No século 19 os maridos eram autorizados a matar as esposas em casos de adultério, porém, Felício não tinha provas para respaldar as suas acusações.

Mesmo assim ele foi libertado, possivelmente graças as suas conexões. Porém, ele queria a guarda dos filhos e procurava falar diretamente com o rei d. João VI, para resolver a disputa. Todavia, quem resolveria o impasse seria o príncipe regente d. Pedro, que foi deixado no comando do Brasil, após a partida da Família Real em 1821.

D. Pedro encontrou-se com Domitila em agosto de 1822. Estava visitando São Paulo em razão da Bernarda de Francisco Inácio e tentava apaziguar a revolta. Ele tinha 23 anos e estava casado com a princesa D. Leopoldina. Era bonito, vaidoso e de personalidade difícil, mas também encantadora. Já havia tido diversas amantes, nunca foi discreto.

Segundo o historiador Laurentino Gomes em seu livro 1822 “o príncipe passava a cavalo quando cruzou com Domitila sendo transportada por dois escravos numa cadeirinha de arruar”. Exaltando a sua beleza ele decidiu a transportar até em casa. A paixão entre ambos foi fulminante. Teve início uma caso amoroso que iria abalar o Brasil.

Em setembro de 1822 d. Pedro proclamou a Independência do Brasil as margens do Rio Ipiranga. Quando o jovem foi aclamado “o primeiro rei dos brasileiros” no Teatro da Ópera é muito provável que Domitila, já grávida, e sua família estivessem presentes e entoando o Hino da Independência. Um ano depois ela e a família passaram a viver no Rio de Janeiro.

Quando Domitila chegou ao Rio de Janeiro ela estava grávida. Porém, não sabemos qual foi o destino da criança, ela pode não ter nascido viva ou pode ter morrido logo depois do partido, Domitila também pode ter sofrido um aborto espontâneo. Mas o que sabemos , com certeza absoluta, é que a presença da amante do imperador na capital não foi bem vista.

Domitila passou por diversos vexames e humilhações. Em setembro de 1824, cinco meses depois de ter dado à luz uma menina chamada Isabel Maria, Domitila foi impedida de entrar no Teatrinho Constitucional. Na Semana Santa de 1825 teve que assistir missa sozinha na Capela Imperial. Tudo isso aconteceu devido a sua “moral duvidosa”. Em 1827 Isabel Maria morreu.

Em abril de 1825 Domitila foi nomeada dama camarista da imperatriz d. Leopoldina. Este é o ponto de virada de sua história. Até então Domitila era apenas amante do imperador e era alvo de fofocas e olhares furtivos, mas com o título passou a ter o direito – e o dever – de conviver com os soberanos, trabalhando e morando na Quinta da Boa Vista.

A nomeação foi um tapa na cara de todos, mas principalmente na face da imperatriz, que preferia sofrer em silêncio. Domitila, que na altura já estava divorciada formalmente do marido, graças às pressões do imperador, tornou-se então uma figura de notoriedade, sendo mencionada em relatos de diversos embaixadores estrangeiros.

Domitila logo passou a receber em sua casa, sede atual do Museu da Moda Brasileira, a visita de servidores e damas do paço. Políticos também figuravam entre os visitantes. Porém, os mais proeminentes deste último grupo, ou seja, José Bonifácio e seus dois irmãos Martim Andrada e Afonso Andrada não eram simpáticos com a favorita.

Os irmãos Andrade, os mais influentes membros do governo, responsabilizaram Domitila pelo fim das investigações em torno dos envolvidos na Bernarda. Não sabemos se ela interviu no caso ou se recebia subornos para intervir na política imperial, mas sabemos que ela sempre foi acusada de tais atos.

Cinco dias depois do nascimento do futuro d. Pedro II, em dezembro de 1825, Domitila deu à luz um menino. O imperador ficou tão animado que até cogitou a possibilidade de dar ao menino o título de Duque de São Paulo, mas tudo veio água abaixo quando o menino faleceu. Pelo menos o herdeiro legítimo seguia vivo.

Em 11 de dezembro de 1826 d. Leopoldina, aos 29 anos, morreu, provavelmente devido a uma febre tifoide. Domitila pode ter cogitado a possibilidade de tornar-se esposa do amante. Mas as coisas não saíram assim. A relação esfriou. Em suas últimas cartas para a amante ele assinava “seu amo e senhor” em vez de “demonão” ou “fogo foguinho”.

O Atentado da Glória, evento onde a irmã de Domitila, a baronesa de Sorocaba, que também teve um caso com o imperador e deu à luz um filho seu, foi quase alvejada por um tiro desfavoreceu Domitila. O imperador sabia que sabia de seu ciúmes da irmã acreditou que ela fosse responsável pelo atentado, porém, acabou se convencendo que ela era inocente.

Porém, o estrago já havia sido feito. De acordo com Paulo Rezzutti em seu livro Domitila: a verdadeira história da marquesa de Santos em determinado momento “o monarca deve ter compreendido que precisava novamente de um modelo que o dignificasse junto ao povo, como Leopoldina fizera até a morte”. As coisas já haviam chegado longe demais. Era a hora de Domitila partir.

Em 1829 Domitila foi enviada de volta para São Paulo, num navio chamado União Feliz trazendo consigo muito mais do que havia levado. Havia ficado rica. Mas longe de chorar pelo leite derrame, ela se encheu de resiliência e decidiu reconstruir sua vida. Em fevereiro de 1830 ela deu à luz a Maria Isabel II.

“Não sabemos como teve início o romance entre eles, mas seus nomes aparecem juntos, como padrinhos de uma menina, em janeiro de 1833” (REZZUTTI, P. 204, 2019). Em junho de 1842 o casal contraiu matrimônio. A cerimônia foi feita em meio ao caos em Sorocaba. Era um período de revolução. Rafael e os liberais haviam se rebelado contra Costa Carvalho e os conservadores que comandavam São Paulo.

Os liberais também haviam levantando armas em Minas Gerais. Os revoltosos tinham cerca de 1.500 homens, enquanto os chamados legalistas haviam enviado para o combate 700 soldados sob o comando do duque de Caxias. Domitila, os filhos e a sogra acabaram se refugiando no convento de Santa Clara.

Diante da iminência de uma invasão de Caxias, a marquesa com um enxada em mãos cavou a terra a fim de salvaguardar caixas de ouro e de prata da pilhagem. Tudo foi em vão! Caxias não pilhou o local, e sim forneceu uma escolta para acompanhar a marquesa e os filhos de volta a São Paulo.

Em dezembro, Caxias capturou Aguiar em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Ele foi preso na Fortaleza de Laje e em fevereiro do ano seguinte foi transferido para a Fortaleza de Villegaignon. Domitila solicitou permissão do governo para acudir o marido e cuidar de sua saúde. A sua presença foi permitida em Villegaignon.

Um ano depois ele foi libertado após a publicação da anistia geral concedida pelo imperador d. Pedro II. Aguiar e os liberais recebidos em triunfo em São Paulo. Parecia que não haviam sido derrotados. Aguiar seguiria atuando na política. Seria eleito deputado em 1845, 1848 e 1857. Candidatou-se para a vaga de Senador, mas foi preterido pelo imperador.

Em 7 de outubro de 1857 ele faleceu a bordo do navio Piratininga. Sofria de reumatismo e problemas renais. Tinha 63 anos. Domitila aos 60 anos tornou-se uma mulher viúva. Ficou arrasada. Em 1859 sua mãe morreu. Seu pai já havia falecido em 1826. Escolástica foi a primeira a ocupar uma das três sepulturas compradas pela filha no Cemitério da Consolação.

Domitila, como uma das pessoas mais ricas de São Paulo, fez inúmeras obras de caridade. Ela fez doações para a Guerra do Paraguai e para a Guerra da Cisplatina. Auxiliou na construção de hospitais e enfermarias para os pobres e até ajudou a combater a fome em Cabo Verde no continente africano. Também custeou a construção da capela do Cemitério da Consolação.

Conta-se que apesar da idade avançada era uma mulher enérgica e ativa. Adorava bailes, saraus e foi patrona de acadêmicos de direito. Domitila também fazia apostas em corridas de cavalo, recolhendo o dinheiro em sua bolsa. Foi uma liberal convicta até o fim de sua vida e influenciou diversas decisões políticas em São Paulo.

Domitila de Castro Canto e Melo morreu em 3 de novembro de 1867. A velha marquesa, como irmã leiga da Ordem Terceira do Carmo partiu trajando apenas uma túnica marrom e uma capa amarelo-clara. Foi vítima de enterocolite aguda. São Paulo cobriu-se de luto. Haviam perdido uma grande de enorme coragem. Foi sepultada no Cemitério da Consolação.

Fontes:

REZZUTTI, Paulo. Domitila: a verdadeira história da marquesa de Santos. 2° ed. São Paulo: Geração Editorial, 2017.

REZZUTTI, Paulo. D. Leopoldina: a história não contada. A mulher que arquitetou a Independência do Brasil. 1° ed. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

GOMES, Laurentino. 1822. Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para não errado. 1° ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010.

Por Fernanda Flores

Originalmente postado no blog Rainhas Malditas

Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego

segunda-feira, abril 20, 2020

As prostitutas em São Paulo



Uma peculiaridade chamou a atenção de quase todos os viajantes estrangeiros que passaram por São Paulo nessa época: a grande quantidade de prostitutas que saía às ruas ao anoitecer à cata de tropeiros. Usavam amplos capotes de lã para cobrir os ombros e parte do rosto. Chamados de ”baetas”, esses mantos haviam sido proibidos várias vezes pelos governadores da capitania, numa vã tentativa de conter a prostituição. Em 1775, Martim Lopes Lobo havia instituído multas e ameaça de prisão para quem o usasse. Trinta e cinco anos depois, em agosto de 1810, o capitão geral França e Horta também determinava que as escravas flagradas com a “baeta”, além de pagar multa, seriam espancadas com palmatória. O dinheiro das multas seria revertido em favor do Hospital de Lázaros. Nada disso pareceu surtir efeito, uma vez que, quase uma década mais tarde, em 1817, Thomas Ender e seu colega botânico Karl Friedrich Phillip von Martius descreviam as mesmas cenas nas ruas de São Paulo.

Fonte: 1808, de Laurentino Gomes. (1° edição)

Imagem: La Goulue chegando ao Moulin Rouge, por Henri de Toulouse-Lautrec, 1892. (Wikipedia Commons)

Originalmente postado no Instagram Rainhas Malditas

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domingo, abril 19, 2020

"Um mal necessário": as prostitutas e seus clientes no Rio de Janeiro imperial



Ao longo da segunda metade do século XIX, período marcado pela transição conflituosa do trabalho escravo para o assalariado, a prostituição no Brasil foi tolerada pelas autoridades públicas como um “mal necessário”, a despeito da perseguição policial e sanitária que foi feita a essa prática. Esse jogo de ambiguidades, que acirrou os debates acerca do meretrício no período imperial, apontava a mulher como principal responsável pela manutenção do comércio sexual, a despeito do cliente, cuja figura continua sendo pouco explorada nos trabalhos sobre o tema. A imagem da prostituta foi masculinamente construída pelo discurso médico, literário e jurídico, na borda de instituições como a Família, o Estado e a Igreja, que relacionavam o comércio sexual ao vício, o não-trabalho e como principal foco de doenças venéreas. Por outro lado, é justamente esse contraste que oferece uma chave para se entender o que Michel Foucault (2017, p. 14) quis dizer quando se referiu ao século XIX como “hipócrita”, uma vez que condenava e reprimia o uso de determinadas práticas sexuais e espaços do desejo, embora reconhecesse a necessidade de mantê-los, devido a uma demanda do público masculino.

Em 1876, Thomaz Lino D’Assumpção disse que “o Brasil, acostumado a importar todos os gêneros de primeira necessidade por intermédio de terceiros, aplica o mesmo processo à prostituição”. Assim como foi feito nos estudos médicos sobre o tema, o cronista detalhava uma espécie de “hierarquia do meretrício”, na qual a cocote francesa ocupava “o último degrau”. Abaixo dela, haveria “a mulher capitalista que tem casa nos subúrbios e se prostitui com o tenor por chic e com o ministro por um fornecimento importante para a firma da razão social do marido” (apud LEITE, 1993, p. 117). Dessa forma, D’Assumpção denunciava não só algumas das razões envolvidas por trás do comércio do prazer, como também apontava quais eram os fregueses que faziam uso desse tipo de intercurso: “de homens casados, a deputados, senadores, advogados distintos e vadios”. Os perfis eram assim desfilados aos olhos do leitor, demonstrando que não havia segredo para a sociedade da época acerca de quais homens recorriam aos serviços de prostitutas, ou os lugares que os mesmos ocupavam na sociedade. Porém, as razões pelas quais frequentavam o bordel, ou determinados hotéis (como o Hotel dos Príncipes, conforme indicam Louis e Georges Verbrugghe), permanece um objeto até então pouco priorizado pela historiografia e demais pesquisas acerca da prostituição no Brasil oitocentista.

Com efeito, o fato de homens dos mais diversificados extratos sociais requisitarem os seus serviços sugere que a procura por sexo fora do casamento estava muito além da mera busca por prazer. Conforme ressalta Luiz Carlos Soares, o bordel deveria “ser o local de exercícios de uma função do corpo, não o local de paixões e disseminação de vícios” (1986, p. 166). Do contrário, médicos, romancistas, cronistas e autoridades públicas dificilmente teriam dado tanta atenção ao tema. Assim sendo, a prostituta, ocupava um lugar demarcado na sociedade da época e com espaço geográfico delimitado para o exercício de sua prática. Porém, a qual propósito social ela estaria atendendo? A resposta para essa questão pode ser inferida por meio de um estudo voltado para a experiência masculina, destacando também aqueles que lucravam diretamente com os serviços da meretriz: seja o caften, que, na opinião de Thomaz Lino D’Assumpção, “apodera-se delas pela sedução, pela fome e até pelos tormentos, obriga-as a uma vida de opróbio, de que é ele sempre quem lucra” (apud LEITE, 1993, p. 118), ou o proprietário de escravos, que agenciava os serviços sexuais de sua cativa para obter lucro.


Segundo Margareth Rago, “a prostituta é um efeito, produto de um meio que beneficia a muitos setores sociais envolvidos, especialmente os homens” (2008, p. 14). Para muitos rapazes, o primeiro contato sexual com a prostituta poderia se enquadrar no que Pierre Bourdieu (2018) caracteriza como rito de passagem da infância para a idade adulta, garantindo-lhe entrada no mundo masculino. Por meio da ação normatizadora do médico, a prostituta deveria ser transformada de inimiga em aliada do Estado, colaborando desse jeito para a construção do ideal de virilidade do cliente, proporcionando-lhe maior experiência sexual para a vida adulta. O fato de o século XIX ter discutido tanto sobre esse tema, preocupando-se com a higiene do bordel e a construção de espaços determinados para os chamados “prazeres ilícitos”, sugere que o interesse das autoridades públicas do período imperial, longe de procurar erradicar o vício, pretendia apenas controla-lo, visando maior conforto para os envolvidos e discrição ante os olhos da sociedade. Essa preocupação aumentou com o início da imigração e a entrada de meretrizes estrangeiras no país a partir de 1850, uma vez que estas circulavam nos mesmos ambientes que muitas senhoras casadas, tais como em cafés, igrejas, teatro e lojas de roupas.


O discurso médico, apoiado pela literatura e a crônica, criou um jogo de hierarquias sexuais para classificar o feminino, visando maior conforto para os homens e segurança para a família. Porém, tanto a prostituta quanto a esposa, apesar de alocadas em espaços simbolicamente opostos, tinham funções importantes na construção da virilidade do cliente: a primeira na edificação de sua potência sexual e a segunda na de sua imagem social. As distinções simbólicas, contudo, desfazem-se quando partimos para a análise de quem eram as mulheres consideradas “puras” e “impuras” nos debates públicos. Nesse ponto, fica latente a questão de classe envolvida nas divisões e subdivisões elaboradas por médicos como F. F. de Macedo e Macedo Jr, em teses defendidas na FMRJ nos anos de 1872 e 1869, respectivamente. Ambos adotam como critério primário para classificação do meretrício a manutenção, por parte da mulher, de relações sexuais fora da instituição do matrimônio. A categoria de “prostituição clandestina” foi utilizada para designar mulheres que: a) viviam amancebadas; b) que tinham boas condições financeiras, como viúvas, casadas, divorciadas e solteiras; c) que tinham baixas condições financeiras, como mulheres livres, libertas e escravas. Note-se, nesse caso, que o comércio de favores sexuais não era um fator essencial para que uma mulher fosse taxada como “meretriz”.

Contudo, tanto F. F. de Macedo como Macedo Jr basearam sua classificação do meretrício a partir da tese do Dr. Herculano Lassance Cunha, “Dissertação sobre a prostituição em particular na cidade do Rio de Janeiro” (1845), trabalho considerado pioneiro na abordagem da prostituição enquanto problema social. No texto, Cunha diz que a melhor forma de lidar com essa prática seria vigia-la e regula-la, uma vez que estava convencido “pela historia, e pelo estudo do homem, da inutilidade e do perigo de qualquer lei prohibidora da prostituição” (CUNHA, 1845, p. 59). Na opinião do médico, a escravidão e o comércio sexual de mulheres negras, forçadas a isso pelos seus senhores, eram os principais responsáveis, no Brasil, pela disseminação de “maus hábitos” e “imoralidades”:

"A numerosa escravatura com todas as suas resultâncias, taes como a preguiça, exemplos ruinosos, o luxo, a vaidade, o amor dos prazeres; a carência de uma educação moral rigorosa, a decadência da religião, o vasto commercio, os exemplos públicos que dão as mulheres de uma conducta reprehensivel, e finalmente todas essas paixões geradas pela civilização, e que, abandonadas a si mesmas, não modificadas pelos meios que a mesma civilização nos depara, e que residem principalmente na educação, e doutrina evangélica (CUNHA, 1845, p. 34).

O Dr. Lassance Cunha, assim como F. F. de Macedo e Macedo Jr. depois dele, elaborou um histórico da prostituição para ressaltar que a situação era tão mais grave no Brasil, devido a um excesso de pobreza por parte da população e à existência do regime escravocrata, que respaldava a compra e a venda de pessoas. Os autores, entretanto, levam em pouca consideração a figura do senhor de escravos e do cliente como principais agentes na manutenção do meretrício, bem como na divisão de espaços simbólicos para os perfis femininos que transitavam pelas ruas da corte.


Dessa forma, pode-se inferir que esses espaços simbólicos, cujas distinções permanecem parcialmente até os dias de hoje, foram masculinamente construídos para enquadrar os dois perfis de mulher de forma que não se confundissem na criação da imagem viril do homem oitocentista. Ambas eram assimiladas como objetos de consumo por uma sociedade frívola e percebidas como seres inferiores que supostamente precisavam da proteção masculina. Além disso, responsabilizar a mulher pela prostituição no século XIX, como pretendiam os autores das fontes levantadas nesse texto, era também uma forma de inocentar um de seus principais responsáveis: o cliente.  Sendo assim, reiteramos que é sumariamente por causa dele que a prostituição se renovou entre as décadas de 1850 a 1880 e não apenas devido a uma possível necessidade financeira e/ou sexual da mulher. O chamado “duplo padrão”, que possibilitava aos homens transitar entre a esfera da família e o mundo do vício, foi enfatizado e debatido calorosamente não apenas nas teses médicas, como também na literatura oitocentista, na crônica e até mesmo em jornais e processos-crime.

Sendo assim, o contato com meretrizes, cortesãs e escravas poderia contribuir para a elevação da potência e desenvoltura sexual do cliente perante seus companheiros, garantindo-lhe também maior experiência para o casamento. A depender da posição que a prostituta ocupava no que podemos chamar de “hierarquia do meretrício”, delineada pelos médicos e higienistas do período, fosse ela uma cocote francesa, uma polaca, ou mesmo uma cativa, a experiência masculina era também ressignificada. As conquistas sexuais garantiriam ao homem certo status perante seus companheiros, contribuindo assim para a construção da sua imagem viril. Em outras palavras, quanto mais alta a posição da prostituta na “hierarquia do meretrício”, maior seria a conquista por parte do cliente. É o que o leitor pode entender, por exemplo, a partir da leitura de “Lucíola”, de José de Alencar. A personagem Lúcia era reconhecida como uma das maiores cortesãs da sociedade carioca no meado do oitocentos e era exibida como uma espécie de troféu pelo homem que contratasse seus serviços, geralmente alguém de posses ou que ocupava um cargo de destaque no cenário político. O contato com a cortesã possibilitou ao jovem bacharel em direito, Paulo, seu amante, acesso ao mundo dos clubes e da alta sociedade carioca, a despeito de suas parcas condições financeiras.


Conforme salienta Carole Pateman, “o contrato de prostituição permite que os homens se estabeleçam enquanto senhores civis durante um tempo e, como outros senhores, que eles queiram obter o reconhecimento de seu status” (1993, p. 304). Em outras palavras, a autora explicita a importância que a sensação de posse do corpo da prostituta tinha para aquele que contratava os seus serviços. A virilidade era assim construída também por meio da sujeição sexual de outra pessoa, o que explica um dos motivos pelos quais o cliente frequentava o bordel. Em uma sociedade com fortes marcas de colonialismo e escravagismo, onde muitas escravas eram assediadas e abusadas por seus senhores, possuir o corpo de alguém estava ligado à ideia de poder e dominação que se constituíam num dos pilares da ideia de masculinidade. Apenas ao final do século é que observamos uma repressão maior e mais sistematizada por parte das autoridades públicas, visando controlar os espaços e as práticas sexuais da população. Por outro lado, o fato de muitos dos trabalhos se referirem à prostituição como “sexualidade insubmissa”, sugere que o exercício de tal prática poderia ser visto também como uma forma de resistência feminina aos padrões morais da época, que tencionavam confinar a mulher no espaço doméstico, no papel simbólico de filhas e esposas e, portanto, abaixo do poder masculino. Essa gama de contrastastes, por sua vez, oferece subsídios importantes para se compreender a construção de um ideia de moralidade que permanece vigente na sociedade brasileira atual.

Referências Bibliográficas:

ALENCAR, José. Lucíola. – 22ª ed. São Paulo: Ática, 1998.

ASSUMPÇÃO, Thomas Lino d’. Narrativas do Brazil (1876-1880). Rio de Janeiro: Livraria Contemporanea de Faro & Lino, 1881.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 6ª ed. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2018.

CUNHA, H. A. L. Dissertação sobre a prostituição em particular na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tip. Imparcial de Francisco de Paula Brito, 1845.

ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo: Brasiliense, 2004.

FOUCALT, Michel. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

MACEDO, F. F. de. Da prostituição em geral, e em particular em relação à cidade do Rio de Janeiro: prophylaxia da syphilis. Rio de Janeiro: Tip. Acadêmica, 1872.

MACEDO JÚNIOR, J. A. de. Da prostituição no Rio de Janeiro e da sua influência sobre a saúde pública. Rio de Janeiro: Tip. Americana, 1869.

MENEZES, Lená Medeiros de. Os estrangeiros e o comércio de prazer nas ruas Rio (1890-1930). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.

PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancini. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

SOARES, Luiz Carlos. Rameiras, Ilhoas e Polcas: a prostituição no Rio de Janeiro do século XIX. São Paulo: Editora Ática, 1992.

VERBRUGGHE, Louis e Georges. Forêts vierges: voyage dans l’Amérique du Sud et l’Amérique Centrale. Paris: Clamann Lévy, 1880.

Originalmente postado no blog Rainhas Trágicas

Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego

sexta-feira, abril 17, 2020

História da Marca: Leite Moça



O Leite Moça é um ingrediente clássico na culinária, principalmente na brasileira. É um leite condensado obtido a partir do leite fresco. Com esta delícia é possível fazer inúmeras receitas ou simplesmente consumi-lo puro. Basta usar a criatividade e preparar maravilhas com LEITE MOÇA. 

A marca é uma das mais queridas pelo consumidor, não só por sua tradição, qualidade e confiança, como pela associação com momentos muito felizes ligados à infância, à família, às festas de aniversário e muitas outras ocasiões prazerosas. Afinal, quem nunca experimentou tomar LEITE MOÇA direto da latinha?

A História
O leite condensado surgiu quando o americano Gail Borden, tentando desidratar o leite comum, descobriu que, antes de transformar-se em leite em pó, o produto virava leite condensado. A invenção dele, patenteada em 1856, só foi valorizada quando estourou a Guerra Civil Americana, quatro anos depois. Transportando leite em pó e leite condensado para as tropas – e depois colocando esses produtos no mercado, ele ficou rico. Mas foi somente alguns anos mais trade, em 1867, que surgiu a primeira indústria criada especialmente para a produção comercial do leite condensado. Foi quando o americano George H. Page, proprietário da empresa Anglo Swiss Condensed Milk iniciou na cidade suíça de Cham, a fabricação de leite condensado, utilizando o leite abundante e de boa qualidade produzido no país. Rapidamente o produto fez sucesso na Europa, principalmente entre as mulheres, que reforçavam a alimentação de seus filhos dando-lhes o energético e açucarado leite condensado.

A Sociedade Nestlé, por sua vez, iniciou a fabricação de leite condensado logo a seguir. Essa concorrência entre as duas empresas terminaria em 1905 numa fusão que deu origem a Nestlé & Anglo Swiss Condensed Milk Co. A jovem com trajes típicos que aparecia nos rótulos das embalagens do produto era uma camponesa suíça do século XIX. Naquela época, o leite condensado mais popular da Suíça tinha a marca LA LAITIÉRE, que significa “vendedora de leite”. Quando esse leite foi exportado para outros países, procurou-se um nome equivalente na língua de cada região para onde o produto foi levado, nome este sempre associado à figura da camponesa típica com seus baldes de leite. Em espanhol, por exemplo, foi adotada a marca LA LECHERA, e na língua inglesa MILKMAID.


Os primeiros carregamentos de leite condensado chegaram ao Brasil em 1890 como uma alternativa ao leite fresco, cujo abastecimento era problemático. O produto era vendido nas drogarias e, inicialmente, comercializado com o nome de MILKMAID (chamado assim pela falta de uma palavra equivalente adequada em português). Mas os brasileiros tinham dificuldade para pronunciar esse nome inglês e passaram a chamar o produto de o “leite da moça”, referindo-se à ilustração da camponesa em seu rótulo. A princípio utilizado como bebida (reconstituído com água obtinha-se o leite integral já adoçado), o leite condensado podia ser armazenado por muito tempo, o que era importante em períodos de escassez de leite. Quando a Nestlé abriu sua primeira fábrica no país, em 1921, na cidade de Araras, em São Paulo, e começou a produzir o produto, optou pela solução lógica de utilizar uma designação criada espontaneamente pelos consumidores: LEITE MOÇA. A qualidade e a versatilidade do produto geraram, desde seu lançamento, uma forte relação de fidelidade entre a Nestlé e as donas de casa. Por isso, em pouco tempo o Brasil se converteu no maior mercado mundial de leite condensado, posição que mantém até hoje.

Somente durante a Segunda Guerra Mundial, após campanhas de reposicionamento do produto, o leite condensado chegou à cozinha, utilizado pelas donas de casa como ingrediente para o preparo de doces e sobremesas. Com isso, as vendas do produto dispararam. Outro fator decisivo para a popularidade da marca foi a paixão nacional pelos doces, herdada dos portugueses, associada ao gosto pelas compotas e frutas, herança africana. Um exemplo disso foi o Brigadeiro, que se tornou um marco importante na história da marca. Conta-se que em 1945, as eleitoras do Brigadeiro da Aeronáutica Eduardo Gomes, candidato a Presidência da República, criaram o doce misturando LEITE MOÇA com chocolate em pó, a fim de arrecadar fundos para sua campanha. O Brigadeiro perdeu a eleição para o General Eurico Gaspar Dutra, mas o outro Brigadeiro, o de LEITE MOÇA, foi se tornando, com os anos, um dos docinhos preferidos de crianças e adultos, presença constante em festas de aniversários. Em 1955, o rótulo de LEITE MOÇA, em sua parte traseira, passou a indicar o produto para uso culinário ou doméstico na preparação de diversos pratos como tortas, bolos, pudins, cremes, sorvetes, além de indicá-lo na mistura com Nescafé: “Para bolos, tortas, pudins, cremes, sorvetes, balas, biscoitos, recheios, etc., etc. Para tomar com café, chá ou chocolate, pode ser empregado sem diluir. Com o Leite Condensado Moça e com o café puro concentrado Nescafé, prepara-se um delicioso café com leite: é a combinação perfeita”.

Quer saber mais? Clique no link abaixo:

Originalmente postado no site Propagandas Históricas

Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego

terça-feira, abril 14, 2020

Mansão da família Peixoto de Castro

Foto 1: Fachada lateral da mansão. (c.1930)

Mansão da família Peixoto de Castro, na Rua Santa Amélia 70, na Tijuca, esquina da Rua do Matoso, construída na segunda metade da década de 1920, possuindo 12 salas, um tanto igual de banheiros, quartos para toda a família, com muita suntuosidade e requinte.

Foto 2: Frente e entrada da mansão da família Peixoto de Castro. (c.1930). Rua Santa Amélia 70.

Inicialmente a propriedade pertenceu ao Barão de São Francisco de Paula, Comendador Joaquim José do Rosário (1826 - 1903), tesoureiro e agente das loterias da Província do Rio de Janeiro desde a década de 1850 até à sua morte.


A foto 3 acima apresenta, a parte lateral da primeira residência do Barão, possivelmente construída na década de 1870, que viria a ser derrubada em 1924, para dar lugar ao novo palacete que aparece lá em cima representado nas fotos 1 e 2.

O filho do Barão, João Carlos de Almeida Rosário, casado com Adelaide Monteiro de Castilho Rosário, tiveram uma filha, Maria Candida de Castilho Rosário, que veio a se casar com João Antonio de Almeida Gonzaga, também agente de loterias.

Maria Candida veio a falecer em 1889, tendo João Antonio de Almeida Gonzaga casado novamente com Alice Guimarães de Almeida em 1894.

Este casal veio a ter 6 filhos: 5 mulheres e 1 homem.

O filho, Adhemar Gonzaga, viria a ser o conhecido jornalista, cineasta e criador da Cinédia, marcante produtora de filmes nas décadas de 1930 e 1940. Aliás, no filme “Barro humano” dirigido por Adhemar em 1929, pode-se ver diversas cenas no interior da mansão.

Hall de entrada da mansão da família Peixoto de Castro. (c.1930). Rua Santa Amélia 70.

Das 5 filhas, Zélia Rosaria de Almeida Gonzaga viria a se casar em 1912, com o comendador Antonio Joaquim Peixoto de Castro Junior, alterando o seu nome para Zélia Gonzaga Peixoto de Castro.


Antonio Joaquim Peixoto de Castro Júnior, além de advogado conhecido, assumiu a concessão de loterias dando continuidade a esse ramo da família da mulher desde do século XIX. Em paralelo começou a participar de diversos empreendimentos industriais e comerciais, tendo como primeira empresa do grupo, a Cia Cirrus, fundada em 1933, e dentre outras mais, a conhecida Refinaria de Manguinhos de 1954, levando a família a ser uma das mais poderosas e ricas do país. Mais um lado deste empreendedor, era sua paixão por cavalos, tendo fundado em 1934 o famoso Haras e, depois, Fazenda Mondesir, em Lorena, Estado de São Paulo.


Do casamento de Antonio e Alice, em 1913 nasceu Nina, Maria Candida Peixoto de Castro, que veio a se casar em 1933 com Heitor Dias Palhares.

Nina, como os pais, era também uma amante das artes e colecionadora conhecida, com uma queda especial na temática Napoleão Bonaparte.

O palacete era repleto de obras e coleções, nacionais e estrangeiras. Três anos após o falecimento de Nina, em 2010, os herdeiros promoveram um icônico leilão do grande e precioso acervo, incluindo jóias, pratarias, aparelhos de louça, móveis, tapeçarias, e tudo mais.

Autores do Projeto: Archimedes Memoria e Francisque Cuchet.
https://orioqueorionaove.com/tag/archimedes-memoria/
https://orioqueorionaove.com/tag/francisque-cuchet/


Hoje existe no local o Residencial Santa Amélia, com dois blocos de apartamentos. Conforme podemos ver pela foto mostrada acima:

Fonte: Memória Carioca Original - Rio de Janeiro em fotos e vídeos antigos.
https://www.facebook.com/groups/memoriacarioca/permalink/3698691953505363/

Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego

segunda-feira, abril 13, 2020

O belo testamento poético de Moraes Moreira (1947-2020)



"QUARENTENA

Eu temo o coronavírus
E zelo por minha vida
Mas tenho medo de tiros
Também de bala perdida
A nossa fé é vacina
O professor que me ensina
Será minha própria lida

Assombra-me a pandemIa
Que agora domina o mundo
Mas tenho uma garantia
Não sou nenhum "vagabundo"
Porque todo cidadão
Merece mais atenção
O sentimento é profundo

Eu não queria essa praga
Que não é mais do Egito
Não quero que ela traga
O mal que sempre eu evito
Os males não são eternos
Pois os recursos modernos
Estão aí, acredito

De quem será esse lucro
Ou mesmo a teoria?
Detesto falar de estupro
Eu gosto é de poesia
Mas creio na consciência
E digo "não violência"
Toda noite e todo dia

Eu tenho medo do excesso
Que seja em qualquer sentido
Mas também do retrocesso
Que por aí, escondido,
Às vezes é o que notamos
Passar o que já passamos
Jamais será esquecido

Até aceito a polícia
Mas quando muda de letra
E se transforma em milícia
Odeio essa mutreta
Pra combater o que alarma
Só tenho mesmo uma arma
Que é a minha caneta

Com tanta coisa inda cismo...
Está na ordem do dia
Eu digo não ao machismo
Também à misoginia
Tem outros que eu não aceito
É o tal do preconceito
E as sombras da hipocrisia

As coisas já foram postas
Mas prevalecem as reles
Queremos sim ter respostas
Sobre as nossas Marielles
Em meio a um mundo efêmero
Não é só questão de gênero
Nem de homens ou mulheres

O que vale é o ser humano
E sua dignidade
Vivemos num mundo insano
Queremos mais liberdade
Pra que tudo isso mude
Certeza, ninguém se ilude
Não tem tempo, nem idade."

Seu último cordel, postado em 18/03/2020.


Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego

sexta-feira, abril 10, 2020

Carl von Martius, o alemão que explorou as entranhas do Brasil e 'batizou' nossa natureza


Alemão explorou e mapeou natureza brasileira no século 19, incluindo distrito destruído por lama em Mariana (MG)

No romance Cem Anos de Solidão, o escritor Gabriel García Márquez descreve Macondo como um lugar tão novo que as coisas careciam até de nome e precisavam ser apontadas com o dedo. Pois no Brasil do começo do século 19, a situação não era muito diferente, pelo menos em relação à exuberante natureza, até então praticamente inexplorada.

Nesse cenário, dois naturalistas bávaros, o botânico Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) e o zoólogo Johann Baptist von Spix (1781-1826) desembarcaram no porto do Rio de Janeiro, em 1817, justamente com essa missão: estudar e dar nome às coisas. No caso, a natureza brasileira, cujo inventário estava praticamente inteiro por fazer. E conseguiram. Durante três anos, entre 1817 e 1820, eles percorreram mais de 14 mil quilômetros pelo interior do país naquela que é considerada a maior expedição científica de exploração da fauna brasileira até hoje.

Mais de 22 mil espécies de plantas foram coletadas, estudadas e catalogadas. Segundo especialistas, é quase a metade de todas as espécies da flora brasileira conhecidas até hoje. Os estudos de von Martius e von Spix foram tão completos que devemos a eles a divisão natural do território brasileiro em cinco biomas como conhecemos até hoje: Mata Atlântica, Amazônia, Caatinga, Cerrado e Pampa.

Dupla coletou 22 mil espécies de plantas no século 19, quase metade do que todas as espécies brasileiras conhecidas até hoje

"Von Martius foi decisivo para a botânica brasileira. Além da maior classificação da flora da nossa história, ele foi o responsável pela primeira organização fitogeográfica do país, que hoje chamamos de biomas e são utilizados, por exemplo, nos estudos do IBGE", explica o historiador Pablo Diener, que, junto com a também historiadora e esposa, Maria de Fátima Costa, lançaram recentemente o álbum Martius (Editora Capivara, 376 páginas, R$ 195).

No livro, os autores contam em detalhes os preparativos para a expedição de von Martius e Spix, em Munique, no então reino da Baviera, em 1815, onde viviam e eram ligados a instituições dedicadas às ciências naturais, como a Real Academia das Ciências da Baviera e o Real Jardim Botânico de Munique. Na época, governantes europeus tinham interesse em enviar expedições ao Brasil, então Reino Unido de Portugal e Algarves, por razões científicas e políticas.

Expedição pelo Brasil percorreu mais de 14 mil km e durou três anos

"Tratava-se de um projeto com o qual o Estado bávaro buscava mostrar-se ao mundo como uma nação culta e fortalecida, através de um grande feito científico: uma expedição", diz um trecho do livro. "Buscava-se conhecer e explorar um país com famosas riquezas naturais, porém ainda envoltas em auréolas misteriosas, e sobre as quais as informações eram cobiçadas pelas grandes instituições europeias."

Mas um projeto desses não era fácil de executar e tampouco barato. Apesar de contarem com o apoio do rei da Baviera Maximiliano José I, a viagem só foi concretizada em 1817, ainda assim porque Maximiliano, que mantinha boas relações com a Áustria, conseguiu uma carona para os dois cientistas na comitiva que levaria ao Brasil a arquiduquesa Maria Leopoldina da Áustria, para casar-se com o príncipe Pedro I, futuro imperador do Brasil.

No Brasil, meteram o pé na estrada, ou melhor, pelos rios, estradas e caminhos abertos no meio da mata densa, em uma expedição que duraria os três anos seguintes, coletando, estudando e registrando tudo o que viam pela frente. Eles partiram do Rio de Janeiro e passaram por Estados como São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas.

Esses relatos se transformariam depois no livro Viagem pelo Brasil, onde ambos narram a jornada, que na maior parte do trajeto pode ser considerada uma aventura. Se hoje não é fácil percorrer por terra mais de 14 mil quilômetros Brasil adentro, imagina naquela época em que pouco se conhecia do interior, com instrumentos precários de orientação e sobrevivência e sem muita noção do que iriam encontrar pela frente.

Desenho feito por Eduard Poeppig e gravura de Hellmuth representado no livro

No sertão nordestino, por exemplo, von Martius descreve sua aflição ao atravessar a caatinga seca que, segundo ele, não passava de uma região pobre de águas e de florestas ralas: "cactáceas de formas esquisitas defendem os seus últimos hálitos de vida com espinhos venenosos, bromélias cujas folhas afuniladas às vezes escondem um mísero gole de água turva." Ele não esconde a aflição ao atravessar "caatingas medonhas" entre os rios Paraguaçu e São Francisco, no começo de 1818, assediado pela falta de água dia e noite.

"Eles aprenderam a viajar viajando, sem uma rota definida e percorrendo espaços que não tinham a menor ideia da existência", explica Diener. Mas a sensibilidade do naturalista sabia diferenciar, pelo clima e tipo de vegetação, quando adentravam em regiões diferentes, o que ajudou na composição posterior dos "reinos da flora" do país, como von Martius chamou os biomas brasileiros. Enquanto a Mata Atlântica era "exuberante e luxuosa", a floresta amazônica, por sua imponência, tinha uma aspecto "intimidante". Em Minas Novas, em Minas Gerais, adentraram em uma região de "árvores baixas, de galhos retorcidos e folhagem larga", que depois seria conhecida como Cerrado brasileiro.

A rota era traçada de maneira empírica e de acordo com o que iam encontrando pelo meio do caminho onde, além da flora e da fauna, também travaram contato com viajantes, comerciantes, populações locais e, claro, índios, que também foram estudados.

Uma passagem curiosa da comitiva é pelo distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), palco da tragédia ambiental ocorrida após o rompimento de uma barragem de dejetos minerais em 2015. "Seguimos para o arraial de Bento Rodrigues e passamos a noite num rancho, onde, mais uma vez, desfrutamos da beleza da paisagem das montanhas do Caraça", descreveu von Martius.

De volta a Munique, em 1820, uma das grandes preocupações dos naturalistas bávaros era catalogar e publicar o quanto antes os resultados da viagem ao Brasil. A pressa era justificada: caso demorassem, outros naturalistas europeus, que também viajaram ao Brasil na mesma época, como o francês Auguste de Saint-Hilaire, poderiam comprometer o pioneirismo dos bávaros.

Em 1823, a dupla lançou o primeiro volume de Viagem pelo Brasil. Outros dois volumes seriam lançados em 1828 e 1831, mas sem a colaboração de Spix, já falecido. Pelo trabalho realizado na América do Sul, os dois naturalistas foram agraciados no seu retorno com títulos de nobreza e incorporaram "von" aos seu nomes. Martius, então, tornou-se von Martius.

O mais importante trabalho publicado de von Martius viria depois com a Flora Brasiliensis (Flora Brasileira), uma monumental obra dividida em 15 volumes e 40 partes publicados a partir de 1840 e dedicados à flora brasileira. Parte da edição só tornou-se viável com ajuda financeira do imperador D. Pedro II, com quem von Martius trocava correspondência e era um conhecido entusiasta das ciências naturais. No total, são 22.767 espécies de plantas reunidas, descritas e analisadas.

Gravura de 1847 retrata o Rio Japurá, Província do Rio Negro, na época de águas baixas

No decorrer dos anos em que estudou o Brasil, Martius contou com o auxílio de 65 cientistas, de vários países, para a elaboração dos volumes do Flora, cuja última parte foi publicada bem depois da sua morte, em 1906. A troca de informações e correspondência com botânicos e estudiosos, inclusive do Brasil, o ajudaram a compor o mapa dos "reinos de flora", os biomas brasileiros.

"Os cientistas o ajudaram com informações sobre lugares que ele conheceu pouco ou talvez nem conheceu, como os pampas", explica Diener. "Ele tinha uma capacidade imensa de reunir e associar informações sobre flora, fauna, clima, hidrografia e outros elementos da natureza para uma classificação natural dos espaços, que são os biomas", completa o coautor de von Martius.

"O interesse dele era enciclopédico e estrondoso para a época. Quase metade das plantas brasileiras que conhecemos hoje no Brasil foram classificadas por von Martius", explica Diener. No inventário elaborado pelo naturalista e os cientistas que o ajudaram na elaboração do Flora, Diener destaca os mais diversos tipos de palmeiras. "A palmeira é a planta que define a paisagem do que ele chama de América Tropical", completa o historiador.

A grandiosidade da obra de von Martius e von Spix não o livraram de polêmicas, principalmente em relação ao que eles consideravam "superioridade" do povo europeu, em especial em comparação com os índios e africanos. Essa pretensa superioridade, na visão deles, era decorrente do atraso em que viviam essas populações em lugares como a América remota e a África. Em diversas cartas enviadas à Europa eles expõem esse eurocentrismo, algo comum entre os viajantes na época, de acordo com os especialistas.

Historiador Pablo Diener lançou junto com a também historiadora e esposa Maria de Fátima Costa o álbum 'Martius'

Ao longo das décadas de estudos e relatórios sobre o Brasil, von Martius, segundo os estudiosos da sua obra, foi perdendo aos poucos esse sentimento eurocêntrico, deixando grandes contribuições para o estudo dos índios brasileiros, inclusive classificações de idiomas dos nativos. "A primeira classificação e organização dos grupos de línguas indígenas do Brasil foi feita por Martius", diz Diener.

"É preciso compreender o contexto da época em que eles viviam para acreditarem nessa suposta superioridade europeia. Era muito comum os cientistas da Europa na época fazerem essa classificação de raças, algo que hoje em dia, claro, não é aceito", explica o doutor em História da Ciência Waldir Stéfano, professor do curso de Ciências Biológicas da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Ele compara o legado de von Martius ao de outro naturalista famoso, o britânico Charles Darwin (1809-1882), pai da teoria da evolução e autor do livro A Origem das Espécies. "A importância de Martius para a botânica é a mesma de Darwin para a origem das espécies", afirma Stéfano.

Marcus Lopes
De São Paulo para a BBC News Brasil

Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego