sexta-feira, fevereiro 21, 2020

A Rua da Praia



Com a pressa e a preocupação que caracterizam a vida moderna, a gente acaba passando por anos a fio no mesmo lugar sem notar seus detalhes. A Rua Primeiro de Março, por exemplo – todo carioca já passou por ela vezes sem conta, mas poucos se quedam a observar o casario. Este belo conjunto arquitetônico fica no trecho entre a Teófilo Otoni e a Visconde de Inhaúma e tem todo o jeitão do Rio antigo: sobrados de três pisos, com portas e janelas com umbrais de pedra e guarda-corpos em ferro fundido. Lá em cima, duas das casas ainda mantêm as telhas originais, pintadas com ornamentos florais. As casas datam do período entre 1870 e 1900, época em que a Primeiro de Março passou por várias intervenções. É daquela época, aliás, que vem o nome da via, antes chamada de Rua da Direita. Primeiro de Março foi a data da vitória do Brasil e seus aliados Argentina e Uruguai sobre na Guerra do Paraguai. Consta que o imperador Pedro II fazia um discurso festivo de uma das janelas do Paço Imperial quando um popular sugeriu que o nome da rua fosse alterado para celebrar a ocasião. A ideia foi aceita pelo monarca , e o detalhe é que muita gente, até hoje, pensa – equivocadamente – que a denominação é uma homenagem à data de fundação da cidade, no longínquo ano de 1567.

Criada para ligar o antigo núcleo do Rio, no Morro do Castelo, ao Morro de São Bento, a Rua da Direita não tinha nada a ver com ideologia política – e nem poderia, pois os termos “direita” e “esquerda” só surgiriam bem depois, na época da Revolução Francesa de 1789. Aqui, na época colonial, ficava a extinta Praia da Cidade, que até chegou a ser bem movimentada, nem tanto por banhistas, mas por pescadores e militares. O simpático motociclista da imagem não teria condições de transitar aqui nos idos do século 17, sob risco de ser engolfado por uma onda. Embora dentro da baía, a antiga praia tem registros de ressacas violentas. Uma delas destruiu o Fortim da Cruz, unidade de defesa da cidade que ficava exatamente onde hoje está a Igreja da Irmandade de Santa Cruz dos Militares, no nº 36. Conta-se, até, que certa vez uma baleia morreu encalhada na arrebentação. O bicho entrou em decomposição e o mau cheiro ficou insuportável no centro da cidade. Foi preciso montar uma brigada de homens fortes e com estômago de aço para retalhar o cetáceo podre e enterrá-lo.

Importantíssima na história do Rio, a Rua Primeiro de Março viu surgirem em seu traçado prédios públicos e igrejas majestosas. O Paço, cujos fundos dá para ela, é de meados do século 18, bem à frente do Convento do Carmo, ainda mais antigo e hoje anexo ao Edifício Cândido Mendes, arranha-céu revestido de vidro escuro que se eleva a 140 metros e é o terceiro mais alto do Rio. As igrejas vizinhas de Nossa Senhora do Carmo e da Ordem Terceira do Carmo são testemunhas da história religiosa do Rio. Em seu interior, três reis do Brasil foram consagrados. O Banco do Brasil, fundado em 1808, teve suas primeiras instalações na rua, assim com o Arsenal de Marinha, que fica lá no finzinho, aos pés do Mosteiro de São Bento.

Hoje, a Rua Primeiro de Março tem tráfego intenso, várias linhas de ônibus e aquele jeitão meio caótico das metrópoles do Terceiro Mundo, mas ainda conserva muito de seu charme. Portanto, da próxima vez que você passar por ela, dê uma paradinha – na calçada, por favor – e olhe para o alto. É bem possível que seus olhos vão se encantar com os prédios centenários. Com um pouco de imaginação, quem sabe, vai dar até para ouvir o murmúrio das ondas de outrora se sobrepondo ao barulhão do trânsito.

Originalmente postado no Passeador Carioca

Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego

6 comentários:

Jane Darckê disse...

"telhas originais, pintadas com ornamentos florais"... que lindeza! <3 Vou tentar me desligar do caótico urbano do 3º Mundo e observar melhor essa região! E lembrar do que li gora, claro...

Jonathan Pôrto disse...

Na questão Religiosa , estar a Direita ser o melhor caminho tem muito a ver com o Catolicismo Romano ligado a Pedro 3:22 e Salmos 110 !!!Nossos colonizadores Europeus trouxeram esse Mito pra cá, o Fanfarrão Presidente Jair Bolsonaro tbm veio mas é outra história !!! 😂😂😂 MONARQUIA JÁ! VIVA DOM LUIZ, chefe da casa Imperial Brasileira !!!

Carlos Eduardo de Souza disse...

Muito bom, meu amigo. Uma bela história de uma das ruas mais conhecidas do Rio de Janeiro. Aprendi muito. Parabéns!

Adinalzir disse...

Prezada Jane Darckê
Seus comentários são sempre bem vindos.
Esse é o objetivo! Valorizar a nossa cidade!

Adinalzir disse...

Valeu Jonathan Pôrto
Sempre grato pela visita.
E vida que segue!

Adinalzir disse...

Que bom que você gostou!
Muito obrigado, Carlos Eduardo de Souza!