sexta-feira, março 15, 2019

O conservador e o reacionário



Quando eu entrei na Faculdade de História, achava que o curso seria relativamente fácil. Acreditava que seria algo como "decorar datas" e memorizar "nomes importantes" do passado. Contudo, não foi bem assim.

Primeira aula de Metodologia da História e veio o choque.

Conceitos e mais conceitos. Via a boca do professor se mexendo e não entendia absolutamente nada. Suando frio e olhando para o teto da sala de aula, percebi o quão errado eu estava sobre o que era, de fato, a História.

Ao longo do curso, com muito suor e algumas lágrimas (confesso), fui compreendendo o que é o fazer e o pensar histórico.

Algumas vezes, pensava comigo mesmo sobre como as coisas estavam do lado de fora da faculdade. Quantas pessoas acreditavam que a "História é só um monte de datas e livres interpretações", assim como eu entendia no início do curso?

No Brasil, de fato, há um considerável desconhecimento sobre o que é História. O ensino de história mais acelerado na Educação Básica, sem o esforço do educador ou mesmo o tempo para um maior aprofundamento, talvez sejam esses elementos as razões pelas quais existe uma maior ignorância acerca do pensamento histórico.

Tal ignorância se expressa, fortemente, na definição imprecisa dos conceitos.

Pra piorar, percebo que grande parte dos brasileiros não consegue fazer uma distinção clara entre o sujeito e o objeto, dentro de uma determinada realidade situacional.

Ao invés de definir um conceito pelo o que ele é, em sua grande maioria, o indivíduo define o conceito a partir de sua própria subjetividade, fazendo com que o sujeito esteja acima do objeto e não ao lado, respeitando a distância requerida.

A partir disso, vêm as distorções e os equívocos.

Um rapaz, da noite pro dia, passa a se ver como conservador.

O pouco do que ele sabe sobre o que é ser conservador, foi retirado de vídeos do YouTube ou de textos pequenos de grupos do Facebook.

Suas fontes de conhecimento não são livros ou anos de estudo em uma instituição de Ensino Superior, mas sim discursos verborrágicos de um homem que grita na frente de uma câmera, ou de teorias conspiratórias que vão do "uso de fetos na Pepsi" ao conhecido alarme de pânico: "os comunistas tomarão o poder!"

O tempo passa e esse rapaz se ajunta com outros garotos, que pensam de forma semelhante a ele. Todos se definem como conservadores, mesmo não entendendo o significado e o conteúdo do objeto.

Mas não é preciso, pois - segundo estes - basta se sentir como um conservador (novamente, o sujeito proeminente e o objeto esquecido).

Entretanto, o rapaz que se vê como conservador, na realidade, é só mais um reacionário.

Oxalá, alguém poderia pagar algumas viagens para esses jovens, a fim de que eles vissem de perto o que é ser um conservador. Passar alguns meses no Reino Unido, acompanhar o dia a dia de um político do Partido Conservador, tentar absorver - pelo menos - um pouco do conhecimento de uma senhora que, desde a sua infância, já passava horas estudando.

O verdadeiro conservador, além de evitar qualquer fonte informal de conhecimento (só de pensar, ele já têm ânsia de vômito e fortes náuseas), é uma pessoa que realmente estuda. Criado a partir de uma rigorosa disciplina, aos 10 anos já sabia grego e latim. Aos 15 anos, tinha lido mais livros que metade da população brasileira. Aos 17 anos, ingressava em Cambridge, no curso de Relações Internacionais. Aos 30 anos, já era Doutor e membro do Parlamento Inglês.

Só a partir de tudo o que ele estudou, com muito esforço e dedicação, ele enfim se tornou um conservador, não porque ele se sentia como um, nem porque um vídeo do YouTube mostrava um homem "mitando", mas porque a longa e difícil leitura dos pensadores clássicos, fizeram com que ele entendesse o objeto e estabelecesse uma relação íntima com ele.

Sabendo dessas coisas, olhando para aqueles que se dizem conservadores no Brasil, é possível afirmar que eles são o que falam?

Um senhor que foi ator da Globo, participou da "Casa dos Artistas" e se aposentou como ator pornô, da noite pro dia, tornou-se um conservador?

Um garoto de 22 anos, sem Ensino Superior completo, que solta uma rajada de palavras com dezenas de contradições?

Uma jornalista que propaga, diariamente, uma série de fake news, desinformando a população, e que agora desfila como deputada federal?

Não, não são e nunca foram conservadores. Das duas uma. Ou falta muita humildade ou um grau elevado de honestidade intelectual.

Além disso, o conservador utiliza o seu próprio conhecimento para solucionar os problemas ao seu redor. Ele retorna aos clássicos e ao saber dos antigos, trazendo a própria "Tradição" ao seu presente, apropriando-a como uma ferramenta política, a fim de implementar mudanças e aplicar as suas ideias.

Em contrapartida, diferente do conservador, o reacionário evita a absorção e a aplicação do conhecimento tradicional, uma vez que ele vê a leitura de um longo livro como algo "maçante e cansativo". É mais rápido e fácil ligar o computador e assistir a um vídeo de um cara barbudo gritando. Para cada palavra do "YouTuber", o reacionário diz "amém", não questionando uma vírgula, nem criticando qualquer palavra dirigida para ele.

Os vídeos e os textos que o reacionário prefere, geralmente, possuem um teor escatológico e "apocalíptico". O medo e o pânico de estar envolvido em uma "trama conspiratória", contraditoriamente, são os elementos que mais atraem o reacionário.

Ele conversa com seus amigos e familiares e, aos poucos, passa a falar igual ao Youtuber que ele acompanha todos os dias. Em seus discursos, o reacionário busca colocar as pessoas ao seu redor dentro de sua "realidade conspiratória", tentando trazer medo e pânico à mente de cada uma delas.

"Eles querem matar vocês!
Temos que ter armas para nos defender!
Imagina se ele entra na sua casa e estupra a sua filha!
Eles querem transformar os seus filhos em rebeldes assassinos!"

Enquanto o conservador tem uma visão relativamente positiva e menos caótica em relação ao futuro, em que a esperança é maior do que qualquer sinal de pessimismo, o reacionário - por outro lado - tem a visão de futuro mais negativa possível.

Vivendo dentro de uma bolha, sempre com um atitude defensiva e com uma doentia necessidade de autoproteção, qualquer ação - por mais insana que seja - se torna legítima, desde que ela o proteja.

Tem que matar, para eu me proteger? Então mata!
Tem que impedir a entrada de imigrantes, para eu me proteger? Então manda eles de volta para a sua terra!
Tem que entrar metralhando essa favela, para eu me proteger? Então metralha tudo!

Do conhecimento, até as medidas planejadas e executadas, é possível notar a diferença abismal entre um conservador e um reacionário.

São raríssimos os indivíduos que são, de fato, conservadores no Brasil. O que há mais por aqui são reacionários, muito mais próximos ao pensamento do Datena do que às ideias de Edmund Burke ou Roger Scruton.

Ignorância, falta de humildade e profunda desonestidade intelectual são as marcas registradas de um reacionário.

Nunca imaginei que, um dia, um progressista como eu, estaria desejando que existissem mais conservadores no Brasil do que uma multidão de reacionários.

Por Gabriel Zani - Historiador

Originalmente postado em Logados na História
 
Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego

4 comentários:

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Excelente texto que compartilhou e que também estou divulgando.

Pode-se dizer que, no Brasil, o que temos é a ignorância dando rumo aos comportamentos e às decisões. Todas as ideologias por aqui são superficiais e muitos não sabem nem por que se dizem conservadores ou mesmo progressistas.

Forte abraço!

Adinalzir disse...

Prezado Rodrigo Phanardzis
Agradeço pela sua visita e divulgação.
E que continuemos na nossa luta contra a hipocrisia e a ignorância.
Um ótimo final de semana!

Cris Vieira disse...

Muito interessante este texto.
Faz algum tempo que não volto a uma sala de aula. Seja para estudar ou mesmo lecionar. Mas quando li o início do texto do professor Zani, me senti interessada em ir até o fim. Porque me lembrei do primeiro dia de aula e da enxurrada de conceitos históricos com os quais obrigatoriamente eu iria trabalhar nos próximos anos da graduação, e da vida após a formação. Foi realmente um revival prazeroso!
Mas falando sobre o segundo tema, o o principal, do texto, eu me sinto preocupada pelas implicações que envolvem o desconhecimento das palavras, seus significados para além da autodefinicao que hoje existe.
Infelizmente a classe profissional de historiadores e professores estão diante de uma luta absurda e inglória frente a um "manancial de conhecimento" mais vazio do que um caderno novo no primeiro dia de aula. Se o hábito da leitura diária jamais foi incentivado neste país na atualidade, o de assistir para supostamente compreender tornou-se o carro-chefe, inclusive de interesse do próprio novo MEC. Os livros, principalmente os de História elaborados por historiadores são alvo de chacota e vistos como virulentos e repositórios de idéias revolucionárias "contra a moral e os bons costumes". Hobsbawm na época de seu falecimento foi enxovalhado por "críticas" de pessoas que nunca leram seus livros. E quando leram, sequer compreenderam que eram de História e não panfletos com mais de quatrocentas páginas. Outros e outras historiadores sofreram com o mesmo nível raso e vazio de críticas que focavam em suas vidas mas jamais em suas contribuições para o campo do Conhecimento.
Eu cito isto porque na época em que ainda perdia meu tempo explicando diferenças como a que você citou, professor, eu indicava para pessoas que claramente se autoproclamavam conservadores, mas mantinham um discurso cáustico e violento, que a melhor forma de demonstrar que antes de tomar para si um "rótulo" era necessário compreender o que ele, e eu indicava livros para ajudar nesta desconstração e reconstrução do 'eu' separado do objeto. De Edmund Butler a Hobsbawm, como citei acima, exatamente para que conseguissem argumentar sobre quaisquer assuntos sem caírem na mesmice da repetição de frases ouvidas ou lidas nas redes sociais e outros espaços mais visuais do que de conhecimento pela Internet.
Mas, infelizmente, minhas tentativas raramente tinham algum retorno, ou mesmo aceitação. Até de doutrinadora fui chamada por indicar um livro de uma historiadora brasileira sobre a República de Weimar e a ascensão foi Nazismo na época de sua existência.
E isto me leva a conclusão são de que ainda que saibamos que estas mesmas pessoas sejam, na verdade, reacionárias, em suas falas e mesmo ações (mais reações do que ações), eu acredito que elas se sintam confortáveis em se autointitular conservadoras. É um título mais 'brando', que oculta e mascara bem o que eles sabem que não são atitudes de uma indivíduo, como bem se explanou, que faça parte de um grupo como o partido conservador inglês, por exemplo.
Mas estamos em um momento em que parece mais difícil debater sobre estes temas sem que ocorra ataques gratuitos e desnecessários por falta de compreensão do assunto. Este texto foi de uma necessidade premente e me encho de esperança de que consigamos ainda mostrar que se pode publicar na rede de computadores conteúdo sério e que esclarece, e não somente as repetições vazias que dão dor de cabeça em quem já está enfastiado com as tolices diárias que lê.
Obrigada pelo texto e até mais, professor Adnalzir!

Adinalzir disse...

Muito feliz e agradecido pelo seu comentário, Cris Vieira
Suas palavras me estimulam ainda mais a prosseguir nessa luta contra a hipocrisia e a ignorância. Infelizmente aqui no Brasil o conhecimento através da educação é muito superficial e muitos não sabem nem mesmo por que se dizem conservadores ou reacionários. Vivemos num estado de marasmo total dentro de um túnel escuro escuro e sem fim. Mas temos que ter esperança! Até mais e volte sempre a este singelo blogue!