sexta-feira, outubro 19, 2018

O tesouro da gruta paciente



Quando a importante fazenda de Dona Mariana Eugênia foi entregue à própria sorte (ou azar), em 1840, ano em que a nobre proprietária faleceu, duzentas pessoas que lá viviam escravizadas no engenho de cana-de-açúcar choraram como se tivessem perdido um membro querido da família. A escravidão “gentil” era uma prática comum em algumas poucas fazendas do Brasil imperial: não havia senzala, as famílias viviam em casas comuns, ao redor da casa-grande, e a relação era fulcrada no respeito mútuo. Dona Mariana batizou como madrinha dezenas de crianças nascidas na Mata da Paciência.

COM a sua morte, as terras foram parcialmente abandonadas, já que suas duas filhas preferiram viver na corte, no centro da cidade, casadas com nobres filhos do Império. Negras e negros tiveram de aceitar o destino que os maridos das duas meninas quiseram lhes impor. Umas foram trabalhar como doceiras, arrumadeiras, passadeiras, faxineiras, em casas brancas no centro da cidade. Uns foram lavrar outras terras, em outras fazendas do Estado do Rio.

MAS um mistério persiste até hoje, pelas bandas da Serra do Cantagalo, a menos de três quilômetros do local em que se situava a sede da Mata da Paciência. Contam que um tesouro, enterrado numa gruta, ao pé da Serra, estaria esperando a luz do dia lhe nascer. Quando Dona Mariana Eugênia morreu, dezenas de escravos fugiram da fazenda, temendo serem vendidos ou negociados para terras distantes. O medo maior era terem de ir para fazendas “não gentis”, em que o tratamento dado à escravaria era o do açoite e o da senzala fria e mórbida.

SE o tesouro foi roubado do cofre da fazenda, ou se foi um presente das mãos de Dona Mariana, nada se sabe. Colares, brincos, anéis, braceletes, pulseiras, rosários, repletos de ouro, diamantes e pedras preciosas, estariam enterrados dentro de uma pequeníssima canastra de prata, do tamanho de uma caixa de sapatos. Um bisneto de um dos escravos fugidos da Mata da Paciência viveu pelas ruas do bairro paciente, até 1997, quando morreu atropelado na Estrada Santa Eugênia, após uma noite de esbórnia e cachaça.

“PAPAI Noel”, como era chamado pela população local, por conta de uma enorme e espessa barba branca (que se destacava mais ainda pela negritude de sua pele), contava que o tesouro estaria enterrado dentro de uma gruta, na Serra do Cantagalo, com uma fonte de águas cristalinas correndo por perto. Como seu bisavô realmente viveu na fazenda da Mata da Paciência, ao pé da Serra da Paciência, de 1810 a 1869 (já depois do esfacelamento da opulenta fazenda paciente), a história se encaixava bem com a grandeza do velho engenho de açúcar.

ELE mesmo, o pobre Papai Noel, tentou cavar, diversas vezes, com picaretadas, toda a área, sem nunca conseguir encontrar nada, a não ser enormes calos nas mãos. Ah, se eu tivesse como explodir partes do solo, sem destruir a gruta inteira!... – costumava lamentar-se assim, em todos os bares do bairro, sempre que alguém tocava na lenda do tesouro da gruta paciente.

PAPAI Noel, regularmente, chegava a reunir meia dúzia de curiosos, alcoólatras como ele, pelos bares pacientes, e, resolutos, caminhavam até o sopé da Serra do Cantagalo, em manhãs ensolaradas de sábado ou domingo. As esposas, em casa, preparando o almoço do dia, suspiravam, olhos voltados aos céus, bem distantes das panelas de cabos surrados, pela ideia de que pudessem enricar, de uma hora proutra, do nada, com um décimo que fosse do enigmático tesouro...

OS anos foram se passado, Papai Noel envelhecendo, e nada do tesouro, ainda que, vez ou outra, o ritual da caça ao tesouro se repetisse a partir dos bares.

CERTA tarde, chegou a triste notícia: Papai Noel morrera atropelado, por volta do meio-dia, quando saía, solitariamente, da gruta misteriosa. Velório abarrotado de gente paciente, no cemitério de Santa Cruz. No dia seguinte, às dez da manhã, foi seu concorrido sepultamento. Não houve choro, nem lágrimas, mas a comoção era geral. Só se ouviam pássaros (pardais, cambaxirras, canários da terra e tizius), ao longe, cantando pelas árvores que circundam o campo santo santacruzense.

NO dia seguinte, Dona Carlota, a vizinha mais próxima, quando pegou a calça e o casaco surrado do bom velhinho, pesarosa, para entregar a alguma pessoa necessitada do bairro, percebeu pequenos objetos nos bolsos das vestes do pobre homem. Quase tombando para trás, ela retomou o seu prumo no beiral do velho tanque de roupas à sua frente. Colares dourados, prateados, ornados de pedras brilhantes. Aneis, pulseiras, gargantilhas e brincos, brilhantes, fulgurantes, quase lhe cegaram os olhos, de tanta beleza e esplendor. O BAIRRO inteiro soube da riqueza encontrada nos bolsos rotos de Papai Noel. Gente de todos os lados do bairro, e até de Cosmos, Santa Cruz, Guaratiba e Pedra, avançaram sobre a gruta paciente, ao pé da Serra do Cantagalo. Alguém trouxe dinamite, granadas, e, de longe, explosões simultâneas foram ouvidas, a quilômetros de distância... Nada se achou! A gruta foi dinamitada, destruída, e nada mais se vê hoje em dia do que um dia foi a fonte cristalina que nascia dentro dela. Só mato cobre hoje o local. Se Papai Noel encontrou o tesouro, onde teria guardado o restante das preciosidades? E onde andaria a tal canastra prateada? Enigma paciente, de décadas, que persiste até hoje nas manhãs do velho oeste carioca.

Isra Toledo Tov, escritor e memorialista.
Mata da Paciência, 31 de julho de 2015.

2 comentários:

Ramiro Marques disse...

Uma história interessante.

Adinalzir disse...

Valeu Ramiro Marques

Muito bom saber que você gostou desta singela história

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