sábado, outubro 26, 2024

Um santo sem cabeça, uma navalha entre os seios: violência e rixa velha nas Minas Gerais setecentistas

"Grupo de negros, (em frente da Igreja de S. Gonçalo)", gravura de Luis Schlappriz, c.1863. Acervo de Iconografia do IMS. 

Rosa Maria Valadão era preta e forra. Vivia como pedinte em Mariana, sede do Bispado de Minas Gerais. Como era do seu costume, instalava-se na Rua Nova da cidade, convocando esmolas para São Benedito, seu santo de devoção e de tantos outros pardos e pretos. Numa manhã de outubro do ano de 1764, Rosa montou seu altar à espera de donativos. Tudo corria bem, ganhava-se algumas moedas, até que Bernarda da Assunção Freire, parda e forra, sem nenhum motivo aparente, saiu pela porta de sua residência e lançou-se, com “cólera e ímpeto iracundo”, sobre Rosa Maria Valadão, xingando e agredindo-a. Não se contentando com os ataques físicos, Bernarda ainda lançou a imagem de São Benedito ao chão, quebrando-lhe a cabeça e a mão “como se fosse uma herege” (QUERELA, 1764, f.12v.). 

A briga foi separada por dois homens que presenciaram a confusão e resolveram intervir, evitando assim maiores danos. Ao acabar com a contenda, agiam em conformidade com as determinações legais e morais, em benefício da ordem e da paz social. Tudo estaria resolvido, se o caso não tivesse novos desdobramentos e chegasse à justiça, revelando aspectos importantes para a compreensão do ambiente convulso da sociedade mineira. Uma dentre muitas, a trisca promovida por Bernarda reflete a violência que se exprimia nas áreas urbanas onde o convívio condensava atritos corriqueiros, não obstante o olhar policialesco da população local e da vigilância próxima dos agentes de controle. Salva pela intervenção providencial, Bernarda voltava para casa, mas a violência do evento não haveria de cessar com a triste imagem do São Benedito de cabeça partida. 

No dia seguinte ao ocorrido, um pouco antes do início da noite, Bernarda acompanhada de um grupo de mulheres moeram Rosa Maria de pancadas. Armado com navalhas e barras de ferro, o bando de Bernarda – formado por Rita da Conceição, Maurícia, Agostinha, Januária, Leonor e Inácia dos Ventos – deixou Rosa Maria com diversas feridas pelo corpo. Dessa vez ninguém a socorreu e coube a esmoler apelar à justiça rei, contratando os serviços do experiente advogado João de Souza Barradas para cuidar do processo de querela, classificado como sendo de “rixa velha”. 

Nos termos desse letrado, Bernarda e seu grupo agiram com “furor, rancor […] prosseguindo no propósito absurdo […] de satisfazer sua vingança” (QUERELA, 1764, f.13v.). Considerada entre os gregos antigos como uma das Fúrias – personagens mitológicos que perseguiram Orestes por ter assassinado sua mãe, Clitemnestra – a prática da vingança em Minas Gerais incendiou conflitos, impetrou crimes, fomentou assuadas e, provavelmente, tenha até instigado alguns levantes. Apesar da sua relevância para a compreensão das formas de justiça popular, poucos estudos têm se dedicado ao tema. A vingança nasce e se nutre de violências recíprocas que criam uma memória da dor e ódio de potencial explosivo. A vingança funciona segundo uma “economia das trocas trágicas”, um sistema de câmbio de represálias, onde o revés da ofensa inicial é saldado com novas agressões em uma espiral ascendente de malefícios (ANTUNES, 2017, p.513-514). 

A rixa, em especial a velha, é uma das manifestações da vingança. Entretanto, para Rosa Maria, as trocas de ofensas e agressões foram desiguais. Em que pese a possibilidade de Bernarda responder a um possível e antigo ataque de Rosa Mariana, a querela judicial só menciona as injúrias que esta sofreu. Sem condições de respondê-las à altura, a pedinte da cidade de Mariana movimentou seus parcos recursos para pagar os serviços de um advogado formado que a representaria nos auditórios da justiça regular. 

Embora não existisse na legislação da época uma ordenação específica sobre rixa velha, é possível encontrar algumas menções à rixa associada às agressões e pendengas em geral. No livro quinto das Ordenações Filipinas, que regia a justiça no mundo luso desde o início do século XVII, o termo rixa aparece no capítulo 35 que trata “dos que matam ou atiram com arcabuz ou besta”. Nele, a pena fixada para os casos de homicídio era a morte. Em seu quarto artigo, o capítulo determinava que, se o homicídio fosse promovido por arcabuz ou besta, além da “morte natural”, o assassino deveria ter “decepadas as mãos ao pé do pelourinho”. Mais adiante, marcando as diferenças típicas de uma sociedade estamental, as Ordenações estabelecem que em caso de “rixa com cada um dos ditos tiros [de besta ou de arma de fogo], posto que não se mate, se for escudeiro e daí para cima, seja degredado dez anos para o Brasil, com um pregão e audiência; e se for peão, seja publicamente açoitado e degredado, com baraço e pregão pela vila, por dez anos para o Brasil” (LARA, 1999, P.143-145). Era essa a lei para os casos em que a rixa escalava ao ponto de colocar a vida em risco em situações de conflitos armados.  

Se a rixa tinha um papel secundário nas Ordenações, a rixa velha quase não é identificada nas leis ou tratados jurídicos portugueses da época. Há, contudo, registros dicionarizados que ajudam a compreender melhor o uso do termo. Segundo Dom Raphael Bluteau (1714-1718, v.7, p.214), a “reixa” é o mesmo que peleja de palavras, enquanto a “reixa velha” é um desentendimento antigo. Outro dicionarista do século XVIII, Antonio Moraes e Silva (1789, t.2, p.314) é menos econômico na definição e apresenta a “reixa” como uma contenda, briga, desordem, discórdia. Já por “reixa velha” entende a “inimizade antiga, já manifesta por atos anteriores”. Portanto, a rixa é um conflito expresso em palavras e/ou agressões físicas e, quando antigo, forja inimizades. 

Embora o processo judicial aberto não permita apurar os motivos da animosidade, é possível supor que o conflito entre a parda Bernarda e a preta Rosa Maria remontasse ao tempo em que viveram em Vila Rica. Contribui para essa suspeita o fato dos advogados, tanto o de acusação, como o de defesa, tratarem o conflito entre as partes como sendo uma “rixa velha”. Um conflito antigo, desses que se apegam aos ressentimentos e alimentam a vingança. Entretanto, mais do que uma rusga interpessoal, o conflito em pauta envolvia questões da ordem do convívio social turbulento, marcado pela escravidão, situação compartilhada pelas forras.                 

As reputações de Bernarda e de Rosa Maria não eram das melhores e refletiam, em pequena escala, o cotidiano violento, escravagista, miserável e fluido das Minas Gerais. A ré do processo, a parda Bernarda, era conhecida por andar armada com uma navalha entre os seios. Com sua turma, recorria ao instrumento cortante e às barras de ferro. Antes de se alforriar e mudar para Mariana, Bernarda vivia em Vila Rica, onde esteve frequentemente envolvida em contendas. Já a preta forra Rosa Maria, autora do processo, não tinha as melhores das famas. Teria sido açoitada várias vezes na cadeia de Vila Rica por delitos que cometera. É possível imaginar o peso aviltante do chicote, especialmente para uma preta forra, marcada pela escravidão. Dentre outros fatores, o posicionamento social na sociedade mineira dependia da fama, mesmo entre os menos privilegiados, cuja estirpe sequer figurava nas Ordenações Filipinas. 

Em grande medida, os conflitos cotidianos das Minas Gerais são atribuídos a um desregramento promovido pela fluidez social e descontrole dos povos que vieram à exploração das riquezas locais em grandes levas migratórias. Conjugado a outras atividades mercantis e econômicas, a exploração de ouro em abundância era uma novidade sonhada para a história da colonização portuguesa na América. Coube à metrópole criar instrumentos reguladores para fazer fluir as riquezas aos cofres do rei. Isso não impediu os contrabandos e muito menos logrou evitar as ebulições sociais, como dão prova a Guerra dos Emboabas, a Sedição de 1720, os motins do Sertão de 1736. Para alguns historiadores, esse período de desordens teria se atenuado após a década de 1740, com a maior imposição do Estado, mas a violência nunca deixaria de ser uma constante. Ou seja, por mais que o Estado lograsse debelar os grandes movimentos revoltosos, toda uma sorte de crimes permaneceria incomodando à sociedade. 

Basta um pequeno levantamento das ações criminais de Mariana no século XVIII para se verificar a diversidade das manifestações da violência no dia a dia (SILVA, 2015, p.123-125). Tomando o registro de 185 processos criminais do cartório de segundo ofício referentes ao período, pode-se identificar a predominância de ferimentos, facadas, agressões, tiros, pancadas, espancamentos que, juntos, somam 55 casos. Em segundo lugar, as injúrias, insultos, ofensas perfazem o total de 49 ocorrências. Na terceira posição, com 20 casos, estão os homicídios, tentativas de assassinatos e garantias de vida, isto é, os instrumentos que visavam dar alguma segurança ao ameaçado de morte. Esses indicativos são uma pequena amostra dos abusos contra a honra, o corpo, os bens e a ordem pública. Como foi apresentado, nas Ordenações Filipinas e nos dicionários setecentistas, a rixa se manifestava em atos de agressão e de “pendências de razões”, de onde deduzir sua presença na abrangência dos crimes cometidos em Mariana, em especial nos casos aqui mencionados. 

Voltando ao caso de rixa velha, o fim da querela guarda uma surpresa: Bernarda e sua gangue não foram punidas. Rosa Maria concedeu-lhes o perdão! Não se conhece ao certo os motivos que levaram a Rosa Maria, pedinte e devota de São Benedito, a essa decisão. Seria por misericórdia e espírito cristão? A autora não teria condições de arcar com todos os custos do advogado e da justiça? Teria temor de novas represálias e agressões provenientes do bando de Bernarda? Não foi possível encontrar respostas para essas questões, que são pertinentes, entretanto. Diante do exposto, é plausível suspeitar que o perdão judicial não representasse o fim das agressões. Ao se retirar do processo, talvez Rosa Maria apenas esperasse o melhor momento para realizar sua vingança.

Das muitas histórias que compõem o convulsionado enredo das Minas Gerais e para além dos grandes levantes e inconfidências, os processos judiciais permitem compreender melhor a lógica da violência corriqueira da sociedade mineira. A justiça intervinha em diversas ocasiões, mas quantas outras não ficariam ocultas? Por necessidade, o caso de Bernarda ganhou a forma de auto judicial, o qual, por sorte ou zelo arquivístico, deu-se a conhecer pela história.

Bibliografia Básica

ANTUNES, Álvaro de Araujo. “Das fúrias às Eumênides: a vingança nos tribunais da justiça. Portugal, finais do século XVIII e início do século XIX. In. FURTADO, Júnia Ferreira; ATALLAH, Cláudia Azeredo; SILVEIRA, Patrícia dos

Santos (orgs.). Justiças, governo e bem comum: na administração dos impérios ibéricos de Antigo regime (séculos XV-XVIII). Curitiba: Editora Prismas, 2017, pp. 505- 530.

LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas: livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

SILVA, Edna Mara Ferreira da. As transgressões da moral em Minas segundo os crimes. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.

Fontes Impressas

BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez & latino: áulico, anatômico, architectônico… Coimbra: Collegio das artes da Companhia de Jesus, 1714-1718, v.7, p.214. Consulta feita em 01 de Agosto de 2024.

SILVA, Antonio de Moraes. Diccionário da língua portuguesa composta pelo padre D. Raphael Bluteau, reformado e acrescentado… Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.

Fontes Primárias

Querela – Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana, Ano 1764, Segundo Ofício, Códice 234, Auto 5842.

"Grupo de negros, (em frente da Igreja de S. Gonçalo)", gravura de Luis Schlappriz, c.1863. Acervo de Iconografia do Instituto Moreira Salles. Disponível no link colocado abaixo:

https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/22152/grupo-de-negros-em-frente-da-igreja-de-s-goncalo

Por Álvaro de Araújo Antunes

Professor Associado IV do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto. Atua, sobretudo, no campo da História da Justiça no mundo moderno, assunto sobre o qual escreveu capítulos e artigos.

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