terça-feira, julho 02, 2019

As origens da Fazenda de Santa Cruz

Mapa da figura 1: Os limites aproximados da Fazenda de Santa Cruz em relação ao traçado dos Caminhos Velho e Novo.

A formação da Fazenda de Santa Cruz foi um dos resultados da violenta derrota de franceses e tamoios que aqui estavam e do cálculo sagaz dos padres jesuítas que, através da ascendência moral-religiosa sobre a população local souberam habilmente ampliar seu patrimônio. Na verdade, os padres jesuítas, a despeito das justificativas religiosas de suas ações, tinham um comportamento bastante terreno no que dizia respeito à acumulação de poder e bens materiais. O resultado foi se tornarem senhores coloniais de uma extensão considerável do território regional, e com um poder local que era sem precedentes.

Confira no texto da professora Manoela da Silva Pedroza colocado abaixo:


"As origens da Fazenda de Santa Cruz

A origem dos domínios  que  mais  tarde  formariam  a  Fazenda  de  Santa  Cruz remontava  a  uma  sesmaria  dentre  outras  concedidas  a  Cristóvão  Monteiro,  em  1566. Fidalgo da Casa Real, ele veio cedo para o Brasil acompanhando a nau de Martim Afonso de Souza. Exerceu vários cargos de confiança na Vila de Santos, na década de 1550. Casado com filha de capitão vicentino, Monteiro fez parte do seleto grupo que veio de Santos para fazer guerra contra franceses e tamoios. Chegou à Guanabara trazendo um filho seu e muita gente à sua custa, escravos e índios para participar da tomada do forte Coligny. Lutou e permaneceu ao lado de Estácio de Sá na cidade velha.
 
Vitorioso em 1565, Monteiro passou a fazer parte do grupo a que chamamos de“conquistadores”. Este grupo conseguiu amealhar os primeiros cargos, mercês e sesmarias noRio  de  Janeiro.  Em  1565,  Monteiro  recebeu  terras  em  Piratininga,  nas  bandas  da Carioca, no Rio Iguaçu e nos sertões da Gávea. Mas, em 1567, queixou-se ao capitão de São  Vicente  que  não  tinha  onde  fundar  uma  fazenda  para  sustentação  de  sua  família, recebendo desta vez mais terras na região de Sepetiba, que iam da aldeia de Sapeagoera até Guaratiba, com um rio no meio chamado Guandu, que formariam a futura Fazenda de Santa Cruz. Segundo BenedictoFreitas, ele foi um dos mais aquinhoados dos 750 portugueses do Rio de Janeiro, em 1587, e pode ser considerado o fundador de uma das linhagens da nobreza da terra carioca.  Monteiro,  em  1568,  foi  colocado  no  cargo  de  primeiro ouvidor do Rio de Janeiro e, entre 1568 e 1572, foi vereador da cidade. Tratava-se da maneira  corriqueira  através  da  qual  a  Coroa  Portuguesa  delegava  a  particulares  a execução de serviços, da guerra e das tarefas de colonização.

Vencidos os índios, Monteiro se estabeleceu nas terras recebidas na Baía de Sepetiba. Assumiu domínio e posse das terras que lhe foram concedidas por lá, construiu o primeiro engenho e capela, e lá faleceu. Ao que parece, Monteiro havia deixado clara a vontade de doar parte de suas terras para a Companhia de Jesus. Por isso, em 1589, sua viúva doou sua parte da  sesmaria para a Companhia. Tratou-se de  um legado pio, semelhante à uma capela, visto que instituiu a obrigação de encomendar a alma do casal. Esse tipo de doação, motivada por temores de sofrimentos após a morte, constituíram a maior fonte do patrimônio da Companhia  e mostram sua ascendência moral diante da sociedade local e suas prerrogativas no que tangia à salvação das almas mediante legados imóveis. Segundo Benedicto Freitas, os jesuítas possuíam  métodos específicos para dispor dos bens de viúvas ricas, e assim o fizeram.

Em 8 de dezembro de 1589, a filha de Cristóvão Monteiro, Catarina, e seu marido, José Adorno, fizeram uma “troca” da parte que lhes cabia na outra parte da vasta sesmaria herdada  do  pai,  em  Sepetiba,  por  um  pequeno  terreno  que  a  Companhia  possuía  em Bertioga. Adorno, de origem fidalga, genovês, também fez parte do grupo vicentino de combatentes no forte Coligny e da carnificina no forte de Cabo Frio. Segundo Benedicto Freitas, ele era muito desprendido de bens materiais, um benfeitor de ordens religiosas, construtor de templos e filantropo. Possuía um tio  jesuíta  e  outro  casado  com  uma  filha  de  Caramuru,  servindo  inclusive  como intérprete da língua nativa para o padre Anchieta, Adorno tinha proximidade com os dois lados  da  moeda  colonial,  e  suas  ações  mostram  como  a  violência  e  o  extermínio conviviam bem com o espírito ultrarreligioso da época.

Também no campo da mentalidade, José Adorno transitava pela glorificação do divino em atividades bem materiais. Já viúvo, estava propenso a ingressar na Companhia de Jesus. Segundo Edgard  Leite  Ferreira  Neto,  a  forte  ascendência  espiritual  da Companhia, evidente na sociedade colonial, dotou-a de diversos mecanismos privados de financiamento. Foram inúmeras as doações particulares para a Companhia, consistindo estas nos principais meios de enriquecimento patrimonial dos jesuítas. Elas atestam, com efeito, além  da  existência  de  expressivas  relações  de  poder  entre  a  Companhia  e  os segmentos  sociais  importantes  da  colônia,  uma  liderança  espiritual  muito  forte  entre fazendeiros  e  outros  poderosos.  Em nosso  ver,  esses  elementos  também  indicam  os liames  familiares  e  afetivos  que  uniam  os  padres  à  nobreza  e  fidalguia  portuguesas, possibilitando uma ainda maior afinidade de métodos e trocas – materiais – entre eles.
 
Célere, em  fevereiro  de  1590,  apenas  sessenta  dias  após  a  doação  do  casal,  a Companhia  de  Jesus  tomou  posse  da  totalidade  da  sesmaria  concedida  a  Cristóvão Monteiro. Os padres iniciaram prontamente o trabalho de medição e demarcação da área, que durou até 1613. Neste ano já haviam instalado um curral e denominado a fazenda de “Santa Cruz”. Importa aqui notar a rapidez com que os padres agiram na confirmação das sesmarias, demarcação e medição, inéditos naqueles tempos.

Nos anos seguintes, os jesuítas adquiriram mais partes de sesmarias limítrofes a de Santa Cruz. Faziam compras em dinheiro, o que demostra sua disposição para ampliar patrimônios  também  através  do  precoce  mercado  de  sesmarias  da  época.  Foram quinhentas braças de testada e meia légua de sertão de terras compradas aos herdeiros de Manoel Veloso Espinha, em 1616, por sessenta mil réis. As que lhe foram concedidas tinham duas  léguas  de  costa,  na  restinga de  Marambaia,  e  três léguas  para  o  sertão  de  Guaratiba, e foram legadas aos seus filhos, Manoel Veloso Espinha e Jeronymo Veloso Cubas, que as venderam aos padres.

Em 1645,  os  jesuítas  trocaram  com  o  governador  terras  referentes  à  aldeia  de Itinga,  atual  cidade  de  Itaguaí,  o  que  possibilitou  que  ‘arredondassem’  a  testada  da Fazenda  de  Santa  Cruz  para  leste  do  Rio  Itinguaçu,  onde  colocaram  seu  primeiro marco. Finalmente, em 1654 e 1656, adquiriram de Tomé Correia de Alvarenga e seu genro e  primo,  Francisco  Frazão,  uma  sesmaria  ainda  maior  do  que  a  de  Cristóvão Monteiro,  pagando  o  procurador  do  Colégio  quatrocentos  mil  cruzados  ao  primeiro  e seiscentos mil ao segundo. A gleba havia sido legada por Manoel Correa, pai de Tomé, por sua  vez  genro  de  Tomé  de  Alvarenga,  o  velho,  primeiro  conquistador,  a  quem  se concedeu  a  sesmaria.  Segundo o  padre,  lá  já  teria  havido  “cem  currais,  que  se despovoaram  por  medo  dos  negros  fugidos”.  Esta possuía  seis  léguas  em  quadra,  em continuidade com a sesmaria de Cristóvão Monteiro, e se estendia para além dos altos da Serra do Mar (até o atual município de Vassouras). Portanto, o domínio de Santa Cruz totalizava, em meados do XVII, dez léguas em quadra.

Não era desconhecido dos padres o potencial fluvial-marítimo da Fazenda. Esta possuía abundantes quedas d’água, rios volumosos e navegáveis, e uma extensa testada para o oceano, contando com excelente porto natural. Neste ínterim, é preciso reforçar o “planejamento estratégico” dos jesuítas, de padrão completamente diverso dos outros colonizadores, e a forma com que inseriam a Fazenda de Santa Cruz numa geopolítica dos caminhos e rotas daqueles tempos. Segundo Márcia Amantino, os jesuítas teriam se interessado por aquelas terras por sua localização estratégica (meio do caminho para SãoVicente e também da rota da prata vinda de Buenos Aires). Segundo o mapa produzido por Adriano Novaes, pela Fazenda de Santa Cruz passava, de leste a oeste, o Caminho para São  Paulo  e,  de  Sul  a  Norte,  o  caminho  de  São  João  Marcos, que  pode ser visualizado pelo mapa da figura 1 acima. É importante notar também que a Fazenda era costeada a oeste pelo Caminho Velho (criado em 1695) e a leste pelo Caminho Novo para as Minas (criado em 1707), o que pode ser mais bem apreendido pelo mapa da Estrada Real, na figura 1."

Bibliografia:

Ferreira Neto, Edgard Leite. Notórios rebeldes: A expulsão da Companhia de Jesus da América portuguesa. In: Andrès-Gallego, José (org.) Tres Grandes Questiones de la Historia de Iberoamérica. vol. 1. 2a edição. Madrid: FundaciónIgnacioLarramendi, 2005.
Freitas, Benedicto. Santa Cruz: fazenda jesuítica, real, imperial, vol. I: Era Jesuítica (1567-1759). Rio de Janeiro: Edições do Autor, 1985.
Leite, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo II (século XVI - O Estabelecimento). Coleção Coleção Reconquista do Brasil. vol. 202. Belo Horizonte / Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 2000.
Pedroza, Manoela. Capítulos para uma história social da propriedade da terra na América Portuguesa e Brasil. O caso dos aforamentos na Fazenda de Santa Cruz (Capitania do Rio de Janeiro, 1600-1870). (Tese de Doutorado). Niterói: PPGH - UFF, 2018. (663 páginas). Disponível em: < http://www.historia.uff.br/stricto/td/1970.pdf >.

Sobre a autora:
Manoela da Silva Pedroza é Historiadora e Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense e autora da Tese “Capítulos para uma história social da propriedade da terra na América Portuguesa. O caso dos aforamentos na Fazenda de Santa Cruz (Capitania do Rio de Janeiro, 1600-1870)”, defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da UFF em 2018.

Um comentário:

Adinalzir disse...

Parabéns a Professora Manoela da Silva Pedroza pelo texto excelente!