quarta-feira, março 21, 2018

Crônica da Província - Um dia no bairro de Campo Grande



O homem que vende bolos e doces passa religiosamente às quatro da tarde e logo os cachorros das redondezas começam a soltar um sonoro lamento estimulado pela estridente buzina que o sujeito toca sem parar. Duas horas depois é a vez do pipoqueiro, com um sinal sonoro que não atrapalha nem animais nem seres humanos. E, pelo que parece, faz mais sucesso com a criançada do que o outro vendedor.
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De hora em hora toca o sino da igreja e eu, como não gosto de relógios, já me acostumei a me orientar por ele, que não é tocado mais por sineiros pendurados em suas cordas, mas sim por um programa de computador, bem mais fiel, pois não cochila na hora H. Quem também segue a hora certa é o vassoureeeeeiro, que não tem dia certo, mas sempre que passa, é sempre ao meio-dia, estando ou não aquele calorão de 50 graus.
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Passam também vendedores de tapetes e cadeiras, verdureiros e vendedores de aipim, entregadores de panfletos do mercadinho ou do sacolão, carros de som (alguns altíssimos), religiosas querendo conversar sobre "a palavra de Deus", ciclistas e charretes. Circulam, ainda, expressões vetustas "do tempo do ronca", como a que ouvi outro dia, por incrível que pareça, entre meninas de no máximo 12 anos, que falaram, em meio a uma ruidosa brincadeira de rua: "quem foi à roça perdeu a carroça"!.
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Perto de onde as meninas brincam fica o Moisés, um vira-lata esperto adotado por uma família e que adorar correr atrás de ciclistas e transeuntes (outra palavra vetusta). Correu atrás de mim, quando eu pedalava, por duas vezes, até que na terceira parei a bicicleta, ele veio, meio ressabiado, comecei a coçar seu pescoço e o peito e agora, toda vez que passo, vem pulando pra cima de mim - às vezes com um certo exagero. Até uma das meninas brincalhonas comentou: "ih, alá, o Moisés gostou do moço"! Pelo visto, deve ser raro isso.
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Sobre os vira-latas, já fui algumas vezes, chegando em casa de madrugada, conduzido por eles, que olhavam para os lados, vendo se não havia inimigos, anjos da guarda caninos, que se mandavam ao me verem abrir o portão, provavelmente em busca de outro andarilho da noite. Já nas andanças da manhã era constantemente surpreendido por cumprimentos, bons dias de pessoas que nunca vi na vida, e que, nesses tempos de falta de gentileza (que geram mais falta de gentileza, o oposto do que falava o profeta), causam logo espanto. Passei a adotar o mesmo expediente e, mesmo para aqueles que não respondem ou soltam apenas um muxoxo (mais uma palavra vetusta, juro que é a última), continuo dando bom dia. Afinal, não custa nada ser gentil.
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Texto de André Mansur, jornalista e escritor.

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