Gabriel Habib chegou no Rio de Janeiro na segunda-feira do carnaval de 1914. Desembarcou no Cais Pharoux, atual Praça Quinze, e ficou perplexo com a festa brasileira. Confetes, serpentina, fantasias, tudo era novidade para aquele jovem de 19 anos, nascido em uma pequena aldeia do Líbano chamada Mazrah em 16 de novembro de 1894. De família humilde, desde os 12 anos, Gabriel já exercia profissão de auxiliar de pedreiro e aprendiz de ladrilheiro, e em pouco tempo se tornou mestre no ofício.
O Líbano era um país muito pobre nessa época; além disso, estava sob domínio do então Império Otomano (atual Turquia). Seguindo a norma de “dividir para governar”, os otomanos provocavam discórdia entre o povo libanês através da diferença religiosa. Dessa forma, havia constante tensão entre cristãos, judeus e muçulmanos. Tudo isso fez com que muitos libaneses deixassem o país, fugindo da tirania, do ódio religioso e da miséria.
Três irmãos de Gabriel já haviam imigrado para o Brasil. Estabeleceram-se no Rio e eram proprietários de dois armarinhos: um na rua da Saúde (atual rua Sacadura Cabral, no Centro) e outro na rua Marquês de Abrantes, em Botafogo. Gabriel foi trabalhar com os irmãos, e logo demonstrou possuir enorme carisma e talento para o comércio. Mais tarde, os irmãos desfizeram-se dos armarinhos e abriram uma única loja na Rua da Alfândega, o principal centro de atacado no Rio e território tradicional das colônias sírio-libanesas.
Eventualmente, Gabriel descobriu que os irmãos posuíam vários lotes de terra em um local longínquo chamado Areal, que nada mais era que o atual bairro de Coelho Neto. Tentaram por diversas vezes vendê-los, sem êxito. Na verdade, terrenos em Areal eram oferecidos aos montes em sorteios no jornais e eram fáceis de se ganhar, mas os ganhadores se recusavam a receber o prêmio: não estavam dispostos a pagar a escritura. Gabriel não entendia por quê a localidade era tão desprezada.
Acontece que em 1919, Areal era um imenso matagal, com alguns poucos casebres de sapê, quase nenhuma via de acesso. Fazia parte da zona rural do Rio de Janeiro, e era infestado de cobras e mosquitos. Quando chovia, virava um lamaçal. A eletricidade não havia chegado naquele pedaço de terra esquecido, onde os poucos moradores iluminavam seus lares com lampiões de querosene Jacaré, e retiravam sua água de poços.
Não havia nenhum tipo de comércio num raio de quilômetros. O único meio de transporte era o trem da ferrovia Rio d’Ouro, que ali parava apenas duas vezes por dia, pela manhã e à noite. Os passageiros desciam direto nos trilhos, pois não havia estação e nem mesmo uma plataforma, e tinham que atravessar um curral para chegar em suas casas.
Gabriel costumava pegar o trem duas vezes por semana, apenas para apreciar os terrenos do Areal. Terra era um recurso escasso em seu país de origem, onde o povo só faltava plantar dentro de casa. Filho de lavradores, sabia que aquele local, cujo solo era extremamente fértil, tinha muito valor.
Até que, alguns anos depois, já casado, Gabriel Habib mudou-se para Areal, e construiu ali seu primeiro lar. Sua esposa Joana Mary, mesmo tendo saúde frágil e acostumada a uma vida de conforto quando solteira, nunca deixou de apoiar o marido na sua inexplicável fixação por aquele local.
O primeiro projeto de Gabriel em Areal era o de construir algumas lojas comerciais. Como ele iria precisar de tijolos e telhas e não havia nenhuma olaria sequer nas redondezas, Habib teve que construir uma. Começou então a dividir seu tempo entre a olaria do Areal e a loja da família na Rua da Alfândega, tomando todos os dias o trem da Rio d’Ouro.
Com a olaria, havia material para iniciar a urbanização do Areal. Gabriel conseguiu construir cinco lojas: quitanda, armazém, açougue, padaria e barbearia. Com um centro comercial básico, o local já começava a parecer-se com um bairro. Aqueles que possuíam terrenos ali, se animavam a registrá-los, pois agora já valia a pena pagar a escritura. Até mesmo o Departamento de Obras da ferrovia ordenou a construção de uma pequena plataforma com cobertura de zinco e uma placa indicativa – “PARADA DO AREAL”.
Gabriel, apesar de orgulhoso do pequeno progresso que havia iniciado, não parou por ali. Estava sempre imaginando em como poderia melhorar a qualidade de vida dos habitantes de Areal. Construiu ele mesmo, com as telhas e tijolos de sua olaria, casas populares, as quais alugou a preços módicos para incentivar o crescimento do bairro. Como não havia farmácia no bairro, o “turco”, como era conhecido, mantinha em sua casa vários medicamentos, e com eles atendia a população local, por vezes até mesmo aplicando injeções. Emprestava dinheiro e vendia fiado, com pagamentos a perder de vista. Trazia roupas do centro da cidade para os mais necessitados e ajudava aqueles que não conseguiam pagar pelo funeral de um familiar.
Certa vez, Seu Silva, o açougueiro, procurou Gabriel para contar-lhe, aos prantos, que estava endividado, alegando que a região era demasiadamente pobre e a freguesia, ainda por cima, era exigente e desaforada. Queria ir embora mas não tinha como pagar os aluguéis atrasados. Gabriel ofereceu quitar as pendências em troca do açougueiro ensinar-lhe a cortar carne. Seu Silva aceitou com muito gosto a proposta, e o “turco” foi para trás do balcão, até que conseguisse outro inquilino para o açougue.
Havia em Areal um homem conhecido como Professor Virgílio. Ele e Gabriel tornaram-se grandes amigos, e o professor aliou-se ao libanês para que, juntos, conseguissem que o bairro tivesse sua primeira escola. Visitaram por diversas vezes a Secretaria de Educação, procuraram políticos, enfrentaram todo o tipo de burocracia. Não admitiam que um bairro a apenas 20 quilômetros do centro da capital federal não oferecesse um local para a educação de suas crianças.
Depois de muita luta, a escola foi construída. Na inauguração, estavam presentes diversos políticos oportunistas e demagogos. Nenhuma menção foi feita a Gabriel e Virgílio, que tanto batalharam por aquele momento, mas o povo do Areal sabia quem eram os verdadeiros pais daquela obra.
Virgílio continuou lutando ao lado do “turco”, dessa vez para trazer a luz elétrica ao bairro. Outros moradores juntaram-se a eles, e logo os postes estavam sendo fincados no local, trazendo iluminação decente à população do Areal.
Os anos se passaram e a saúde da esposa de Gabriel foi piorando. Gabriel teve que interná-la em um sanatório em Petrópolis, e também seus filhos foram estudar na cidade. Agora ele tinha que percorrer o trajeto Rua da Alfândega – Petrópolis – Areal. Tal rotina desgastante obrigou Gabriel, que já não era mais tão jovem, a mudar-se para mais perto do Centro. Foi morar na Tijuca, mas voltava sempre ao local para reencontrar amigos, sentar-se na praça e admirar o avanço do bairro que ajudou a construir. Lá estava ele, quando o bairro mudou de nome para Coelho Neto; mesmo não sendo citado nos discursos da solenidade, Gabriel sentiu-se como quem cumpriu seu dever.
Gabriel foi ainda o responsável pela grande transformação e popularização da Rua da Alfândega. Todos os comerciantes acharam uma loucura quando o libanês começou a vender no varejo, pois até então a rua tinha tradição exclusivamente atacadista. Mais uma vez, o pioneirismo de Gabriel Habib contrariou as expectativas. Em alguns anos, a Rua da Alfândega tornaria-se um dos maiores shopping centers a céu aberto do mundo.
Gabriel era um filantropo; estava sempre ajudando os mais necessitados, principalmente instituições que cuidavam de crianças, apesar de nunca usar seus atos de caridade como publicidade, como quando salvou um orfanato que estava prestes a fechar no Líbano, ou quando fazia doações para escolas de regiões carentes.
Em 1958, Gabriel Habib deixava este mundo. A Rua da Alfândega, pela primeira vez, fechou suas portas mais cedo, em homenagem ao homem que mudou sua história. Anos mais tarde, seu nome batizaria uma rua em Campo Grande, e um Centro de Treinamento no Rocha. Mas incrivelmente, nunca recebeu nenhuma homenagem oficial no bairro que ajudou a criar. É uma dívida de gratidão que Coelho Neto terá para sempre com o bondoso “turco”.
Fontes: Livro “O Romance de um Imigrante” (Berliet Junior – 1972 – Ed. Pongetti); dissertação “Sírios e Libaneses no Rio de Janeiro” (Julio Cesar B. Francisco – 2005 – UNIRIO); site Wikipedia.
Pesquisa feita por: https://coelhoneto.wordpress.com/
Um comentário:
Um homem de destaque na sua época.
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