domingo, outubro 14, 2018

Ser criança nos tempos imperiais: obedecer e trabalhar


Jantar em casa brasileira, de Debret

No século XIX, com a implementação da indústria no Brasil, o trabalho de jovens, transformados em “proletários”, era apresentado como “ajuda econômica” que vinha reforçar o orçamento doméstico. A fábrica era vista por patrões e pais de família como uma escola, um lugar que podia formar o cidadão do futuro. Embora, nesta mesma época, uma lei proibisse o trabalho de adolescentes entre 25 e 16 anos, a legislação só se consolidou com as Leis do Trabalho, em 1943. Enquanto isto, milhares de rapazes e também de moças, ficaram sem espaço para viver os rituais da adolescência, pois a passaram entre teares e máquinas.

Saber ler e escrever não eram habilidades estimuladas para moças pobres, obrigando-as a realizar o trabalho doméstico e a sonhar com o casamento e a maternidade como única via de passagem para o mundo adulto. A infância nestes tempos fabricava crianças tristes, verdadeiras miniaturas de adultos na forma de vestir e se comportar. Eram os candidatos ao fraque e à calvície precoce, como dizia Gilberto Freyre, pioneiro em descrever a falta de brinquedos, de imaginação, de travessuras de crianças e jovens brasileiros.

Obedecer e trabalhar era o pão cotidiano da maioria das crianças e adolescentes no século XIX. Entre as crianças escravas, o trabalho não cessou até a Abolição. Lembra a historiadora Heloísa Maria Teixeira que, no período de transição para a mão de obra livre, muitos senhores aproveitaram a Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de 1871, para fazer os filhos de escravas trabalhar até os 21 anos. Frente à conjuntura adversa ao trabalho escravo, as crianças poderiam representar uma boa alternativa. E muitas vezes, cometeram-se ações ilegais para garantir a mão-de-obra infantil como a compra de crianças isoladas, mesmo existindo uma legislação proibitiva a partir de 1869; a valorização dos serviços dos ingênuos; e até mesmo furto de crianças. Não se cumpriam as leis de 1869 e a Lei do Ventre Livre de 1871, “que proibiam a separação das crianças escravizadas − menores de 15 anos na primeira data e menores de 12 anos na segunda − de suas mães.

Em muitas ocasiões, especialmente após a abolição, a tutela representou um meio de assegurar a “posse” das crianças pobres – principalmente, as descendentes da escravidão – com a finalidade de servirem como trabalhadores aos tutores. Os tutelados eram crianças desamparadas, precisando de uma pessoa idônea que lhes fornecesse o bastante para a sobrevivência: casa, alimentação, vestimenta e aprendizado de um ofício para o qual tivessem inclinação. A falta de recursos financeiros fazia com que famílias de ex-cativos não encontrassem alternativas senão a transferência da tutela de seus filhos a quem tivesse condições de sustentá-los.

Ao focar a cidade de Mariana, entre 1850 e 1900, Teixeira conseguiu a descrição dos serviços para 147 crianças. A principal atividade descrita era a de roceiro, muitas vezes eram classificadas como ajudantes de lavoura. Outras funções adequadas a pouca idade dos escravos apareceram: pajem, pastor, candieiro ou guia de carros de bois, servente, copeiro. Crianças com menos de sete anos não foram descritas com atividades.

Por sua vez, a historiadora Kátia Mattoso estudando a questão na Bahia das últimas décadas da escravidão declara que:

“o período na vida da criança que vai dos três aos sete para oito anos é um período de iniciação aos comportamentos sociais no seu relacionamento com a sociedade dos senhores, mas também no seu relacionamento com a comunidade escrava. É, sem dúvida, nesta tenra idade que o seu senhor vai formar ideia sobre as capacidades e o caráter da criança. É nessa idade também, que a criança começará a perceber o que são os castigos corporais, que adentram pela vida adulta (…). Por volta dos sete para os oito anos, a criança não terá mais o direito de acompanhar sua mãe brincando; ela deverá prestar serviços regulares para fazer jus às despesas que ocasiona a seu senhor, ou até mesmo, à própria mãe, se esta trabalha de ganho e reside fora da casa de seu dono. (…) A idade de sua vida que vai dos sete aos doze anos, não é mais uma idade de infância, porque já sua força de trabalho é explorada ao máximo (…). Mesmo se seu rendimento é menor, ele é escravo à part entière, e não mais criança”.

Ao estudar os viajantes estrangeiros, Maria Lúcia de Barros Mott também percebeu os sete anos como o momento quando as crianças escravas passavam a trabalhar no serviço mais regular. “Deixavam para trás as últimas ‘regalias’ infantis, aqueles que viviam na casa do senhor passavam a desempenhar funções específicas para sua idade ou já eram treinados para funções que desempenhariam vida afora”. Já Renato Pinto Venâncio, ao focar a região metalúrgica-mantiqueira, no século XIX, aponta o interesse pela mão-de-obra infantil devido ao fato desta região produzir larga gama de produtos de artesanato em domicílios, cabendo aos pais cativos ensinar às crianças a fabricação artesanal.

No Nordeste, meninas como a futura escritora Amélia Beviláqua, “batiam bilros” em almofadas, ouviam estórias contadas por “beatas” ou “narrativas de mistérios de outras vidas”, e aprendiam a ler sob a férula da palmatória do professor particular. Já meninos da família Cavalcanti empinavam papagaios de papel: “tapiocas” tristonhas que não subiam tão alto quanto os “baldes” ou os “gamelos” dos moleques da rua. Ou pescavam nos viveiros dos Afogados ou de Jiquiá, camorins, carapebas e curimãs. Liam o “Dicionário Popular”, de Pinheiro Chagas e os romancistas franceses Eugene Sue e Alexandre Dumas.

Já o relato de férias de Pedrinho, filho do rico cafeicultor na região de Bananal, Pedro Luiz Pereira de Souza, revela as férias de jovens de elite: passeios a cavalo pela fazenda, refeições abundantes, muitos “bolos e biscoitos”, caminhadas ao luar, pic-nics, mesinhas de jogo, excursões pela serra da Cambira, no alto da Bocaína, prosas animadas e anedotas. O ponto alto era o Carnaval, onde os jovens se molhavam uns aos outros!

Referência Bibliográfica:

PRIORE, Mary del. “Histórias da Gente Brasileira: Império” (vol.2), editora LeYa, 2016.

Postado neste blog por Adinalzir Pereira Lamego

6 comentários:

ALDAIR disse...

Muito interessante o tema. Parabéns . Como é a história das crianças no século 21? Evolui o trabalho ou regrediu ?

Adinalzir disse...

Boa Aldair

Perfeita reflexão. Para mim esse trabalho escravo das crianças ainda existe pelos diversos rincões desse nosso imenso país. Apesar de hoje as crianças acabarem se tornando um pouco preguiçosas. Muitas vezes ate´incapazes de gerir suas próprias vidas. Talvez pelo próprio mimimi dos pais.

Abraço e muito grato pelo comentário.

RODRIGO PHANARDZIS ANCORA DA LUZ disse...

Parabéns pelo texto! Infelizmente, durante mais de 400 anos de História, só mesmo os filhos da aristocracia conheceram a infância. Porém, se compararmos com os dias atuais, creio que, muitas crianças brincaram com mais alegria do que hoje durante várias décadas do século XX. Apesar do ECA, hoje há menos oportunidades de convivência e brincadeiras lúdicas. E digo isto sem aversão à modernidade. Apenas ao mau uso das tecnologias.

Carlos Eduardo de Souza disse...

Muito bacana esse tema.A questão da infância curta e praticamente inexistência da adolescência não se restringia a filhos de escravos. Até por volta dos séculos XVIII é XIX era comum as crianças serem chamadas de adultos pequenos, trabalhar nas fábricas têxteis, entre outras coisas.

Adinalzir disse...

Prezado Rodrigo Phanardzis

Suas observações estão corretíssimas. As crianças do século XX, com certeza eram mais felizes. Hoje os pais não sabem lidar com isso, as crianças são até mais tristes. O que influi na sua própria educação.

Forte abraço e agradeço seu comentário.

Adinalzir disse...

Prezado Carlos Eduardo de Souza

Obedecer e trabalhar era o pão cotidiano da maioria das crianças e adolescentes nos séculos XVIII e XIX. Não havia convivências e brincadeiras lúdicas. Coisas que a nossa sociedade só iria obter somente algum tempo depois.

Agradeço pela sua visita e comentário.