sexta-feira, agosto 10, 2012

Legado de ferro


Mesmo perdendo espaço para o asfalto, os trens deixaram um rastro de progresso, cultura e saudosismo pelo caminho.

Todo dia era assim: por onde o trem passava, saindo ou chegando a Curitiba, moradores, principalmente crianças, acenavam de portões e janelas. Alguns se aventuravam correndo, acompanhando os passageiros. Morando próximo da linha, Odair Antônio Brustolin, ainda criança nos anos 1960, também dava as boas-vindas ao trem. Mas quando a locomotiva estacionava, ele cumpria uma função de que ainda se orgulha: levava o almoço para o pai, o maquinista. O orgulho era tanto que hoje, aos 49 anos, Brustolin tem a mesma profissão do pai. “Desde os seis anos, eu já sabia que seria maquinista. Não tinha a menor dúvida”, garante.

Tanta certeza não veio só da tradição familiar. Brustolin, que atualmente conduz o trem turístico que liga Curitiba a Paranaguá, encanta-se com tudo que está ligado à viagem. “A cada dia vejo uma paisagem diferente, uma flor, um passarinho. Fico feliz de agradar aos turistas e passar por onde também passa a riqueza do país”, diz ele, referindo-se aos trens de carga que transportam principalmente grãos para o Porto de Paranaguá.

A ferrovia é um prato cheio para se admirar a paisagem da Serra do Mar. Mas o cenário não é a única coisa que encanta. Trabalhadores, passageiros e moradores de cidades por onde passam as composições guardam histórias que representam a chamada “cultura do trem”. Brustolin, que trabalha no ramo há 35 anos coleciona “causos”. “Uma vez, o trem estava carregado de frangos e teve que parar por um tempo na linha. Era noite, no meio da Mata Atlântica. Apareceu uma onça e ficou rondando os vagões. O segurança teve que subir no contêiner e ficar jogando pedras até ela ir embora”, conta o maquinista, no melhor estilo “história de pescador”.

O cantor e compositor Ivan Lins guarda na memória viagens de trem que fazia na infância. Do Rio de Janeiro, ele ia com a família para Muriqui, praia da Costa Verde do estado. “Eu gostava da vista, do balanço do trem, que me embalava”. Já nos anos 1960, a rotina era outra: ele circulava nas estradas de ferro de Minas Gerais – onde “trem” é sinônimo de “coisa”, ou seja, quase tudo – para participar de festivais universitários. Na década de 1970, com agenda profissional entre Rio e São Paulo, embarcava frequentemente no glamoroso trem noturno que ligava as duas metrópoles, da estação D. Pedro II (mais conhecida como Central do Brasil, no Rio) à Estação Barra Funda, na terra da garoa. “Sempre achei melhor viajar de trem do que de avião”, lembra o artista, que é Ferroviarista Emérito do Movimento de Preservação Ferroviária.

Batizado de Santa Cruz – e mais tarde popularizado como Trem de Prata –, essa composição estava no dia a dia de muitos outros artistas. Principalmente dos que tinham medo de avião. A cantora Aracy de Almeida (1914-1988) chegou a ser apelidada por amigos de “Dama da Central”. O poeta e compositor Vinicius de Moraes era outro que temia voar. Foi numa cabine do Santa Cruz que compôs com Baden Powell a canção “Formosa”. As viagens noturnas e as conversas no vagão-bar renderam até um romance. Instalado numa cabine em frente à de Cristina Gurjão – com quem veio a ter a filha caçula –, Vinicius viveu mais um episódio instigante para incluir em sua biografia. “Cristina volta para sua cabine (...) Abre novamente a porta e vê, então, a porta da cabine de Vinicius entreaberta. (...) Os dois amanhecem juntos. A noite é inesquecível”, narra José Castello em Vinicius de Moraes, o poeta da paixão.

O trem, que pode ter sido um bom alcoviteiro, como no caso do poeta, também já foi associado ao calendário religioso para outros. Em Parnaíba, município litorâneo do Piauí, a composição chegava à cidade em horários extras noturnos a fim de levar a população para a novena em homenagem ao padroeiro. Era também o meio de se chegar à praia. Na década de 1940, o escritor e dramaturgo piauiense Benjamin Santos se divertia nos 13 quilômetros entre Parnaíba a Amarração. “Até as coisas ruins eram boas na viagem de trem. Eu me lembro que volta e meia entravam marimbondos nos vagões. Era uma gritaria... E às vezes as faíscas do trem queimavam as roupas dos passageiros. Para nós, crianças, tudo isso era um grande divertimento”, lembra o escritor.

As recordações das ferrovias são tantas que em 2002, quando exercia o cargo de secretário de Cultura da cidade, Benjamim criou o Museu do Trem do Piauí, instalado na Estação de Parnaíba, fechado em novembro do ano passado pelo atual prefeito da cidade, José Hamilton Castelo Branco. Assim, 156 peças – sinos, taquígrafos, faróis, entre outros objetos – foram parar nos fundos de um centro de artesanato. “O trem tem uma importância muito grande na cidade, não só no aspecto social, mas também no cultural e afetivo”, lamenta o escritor. Luiz Gonzaga chegou a demonstrar o afeto à mesma linha férrea. No forró “De Teresina a São Luiz” (de Helena Gonzaga e João do Vale), o rei do baião cantava: “Peguei o trem em Teresina/ pra São Luiz do Maranhão/Atravessei o Parnaíba/ Ai, ai, que dor no coração”.

Afeto para uns, progresso para outros. Muitas cidades prosperaram com as estradas de ferro. Uma delas foi Cedro, no Ceará. O historiador Gisafran Nazareno Mota Jucá, professor da Universidade Estadual do Ceará, chegou a mencioná-la num estudo sobre a ferrovia no cotidiano da vida interiorana. “A instalação das oficinas de manutenção e reparo de máquinas e vagões atraiu um número considerável de funcionários e pessoas envolvidas com o transporte ferroviário”, relatou Jucá em artigo publicado em 2003 na revista O público e o privado.

Já em Xerém, no Rio de Janeiro, a associação do trem com o progresso não era uma unanimidade. Isso porque, às vezes, a composição manobrava no povoado anterior, fazendo com que chegasse de marcha a ré à cidade. Por esse motivo, reza a lenda que enquanto o trem chegasse de costas, Xerém não iria pra frente.

As estradas de ferro começaram a andar pra trás na década de 1960, quando as rodovias ganharam o país. A imagem de progresso, que era relacionada aos trilhos, passou a ser associada ao asfalto. “Esse processo começou ainda no governo de Jânio Quadros [janeiro a agosto de 1961], com uma política de erradicação dos ramais deficitários. Essa iniciativa foi intensificada no regime militar”, diz o também historiador Paulo Roberto Cimó Queiroz, da Universidade Federal de Grande Dourados, no Mato Grosso do Sul. Ele se dedicou à história da Ferrovia Noroeste, que ligava Bauru (SP) a Corumbá (MS). Mas será que a população assistiu pacificamente a essa substituição dos trilhos pelo asfalto? Aparentemente, sim. “É bom lembrar que, num período de regime militar, as pessoas não tinham muito espaço para reclamar”, adverte Queiroz.

Mas para Jucá, o começo da saída de cena das ferrovias foi outro: “O passo inicial fora dado no governo Juscelino Kubitschek [1956-1961], ao priorizar a abertura de rodovias como uma exigência lógica da expansão do setor industrial, em que o capital estrangeiro se destacava na indústria automobilística”, escreveu.

As reflexões dos pesquisadores – mesmo sob pontos de vista diferentes – chamam a atenção para o quanto as estradas de ferro perderam espaço em pouco tempo. Introduzido em 1854 por Irineu Evangelista de Sousa (1813-1889), o barão de Mauá, o transporte ferroviário chegou a ter 37 mil quilômetros na década de 1950. Hoje, cerca de sete mil quilômetros estão desativados. “O que não podemos esquecer é que o trem não tinha concorrentes até a popularização do automóvel, ou seja, teve quase um século de monopólio. E um século é bastante tempo para um monopólio”, diz Queiroz.

A substituição do trem pelo automóvel não foi um fato exclusivo do Brasil. Os Estados Unidos perderam o equivalente a quase toda a malha brasileira dos anos 1950 a 1970. Eles chegaram a ter mais de 200 mil quilômetros. “O automóvel e o caminhão traziam muitas vantagens na época: eram mais ágeis e podiam andar em qualquer rua. Eu mesmo troquei o trem por ônibus no final dos anos 1960. Como morava em Dourados, para pegar o trem tinha que ir até Campo Grande. Mas aí passou a ter ônibus direto de Dourados para São Paulo. Era menos divertido, mas bem mais rápido”, diz Queiroz.

Luiz Gonzaga chegou a fazer uma leve crítica ao tempo de viagem: “O trem danou-se naquelas brenhas/(...)Comendo lenha e soltando brasa/ Tanto queima como atrasa”. Talvez tenha sido no quesito agilidade que as ferrovias perderam mais passageiros. Ou será que o trem, como todo invento tecnológico, já nasceu para ser passageiro?

Saiba Mais - Bibliografia

BUZELIN, José Emílio de Castro H. Carros Budd no Brasil – 1: os trens que marcaram época. Rio de Janeiro: Memória do Trem, 2002.

QUEIROZ, Paulo R. Cimó . Uma ferrovia entre dois mundos: a E. F. Noroeste do Brasil na 1ª metade do século XX. Bauru: Edusc, 2004.

VASQUEZ, Pedro Karp. Nos trilhos do progresso: a ferrovia no Brasil imperial vista pela fotografia. São Paulo: Metalivros, 2007.

Texto de Vivi Fernandes de Lima

14 comentários:

José Dias Nascimento disse...

Olha eu aqui no blog do meu grande professor. E viva os trens!
Abraços,

Adinalzir disse...

Prezado José Dias Nascimento
Agradeço sua acolhida e sua honrosa visita. Um fraternal abraço!

José Lima Dias Júnior disse...

O Brasil necessita de mais trilhos, além de trens e vagões para escoar a produção e facilitar o transporte de passageiros. Sou de uma época em que o trem passava próximo a minha casa. Passava por trás do nosso quintal quando residia no estado da Paraíba. Hoje, só me resta as lembranças de outrora. Bela postagem!

Abraços,
José Lima Dias Júnior ("Amil Said")

José Mendes Pereira disse...

O professor Adinlazir anda meio desaparecido com os seus excelentes trabalhos

Adinalzir disse...

Prezado José Lima Dias Júnior
Também sinto muitas saudades daqueles trens que não voltam mais. Hoje só restam os esforços daqueles que preservam, enquanto as promessas do governo não saem do papel. Abraços e muito obrigado pela visita!

Adinalzir disse...

Prezado José Mendes Pereira
Concordo com você. Ando mesmo meio desaparecido. São muitas tarefas e compromissos mil. Mas prometo que assim que puder, estarei aqui e ai com toda a carga. Agradeço pela sua estima e consideração. Abraços fraternos!

Roger disse...

Ainda é tempo de se estabelecer uma política séria que retome o meio de transporte sob trilhos. Deveríamos poder percorrer o país inteiro de trem!

Adinalzir disse...

Prezado Roger
Eu concordo plenamente com você e fico grato pela visita. Abraços!

Unknown disse...

Educador, Feliz dia dos Professores!

Apesar das dificuldades existentes na profissão, é gratificante fazer parte da construção do saber de uma outra pessoa.
Os Educadores Multiplicadores agradecem por sua colaboração e participação no aprendizado dos brasileiros.

http://www.marquecomx.com.br/
http://www.educadoresmultiplicadores.com.br/

Os Professores/Educadores construíram o passado, executam o presente e projetam o futuro do país!
Fiquemos na Paz de Deus e até breve.

Adinalzir disse...

Prezados Educadores Multiplicadores
Somos todos parte dessa história de luta e obstinação. Um Feliz Dia dos Professores para vocês também!
Agradeço pela visita e até breve!

Dedetizadora disse...

Concordo plenamente na minha opinião o transporte sobre trilhos é o futuro da mobilidade urbana.

Otimo post Professor.

Abraços,
Dedetizadora

Adinalzir disse...

Valeu Dedetizadora!
Fico muito honrado pela sua visita e comentários sempre pertinentes.
Um forte abraço!

Anônimo disse...

Flavio Freitas, eu trabalhei no Trem de Prata era um sonho.

Jandi Chagas disse...

Lembro de minha infância quando viajava com meus irmãos e minha vó.